Título: Risco das salvaguardas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2005, Editoriais, p. A3

O governo argentino vai insistir no direito de impor salvaguardas comerciais, de forma unilateral, quando os empresários locais denunciarem alguma invasão de produtos brasileiros. O presidente Néstor Kirchner deverá rejeitar, no essencial, o sistema proposto pelo Brasil para corrigir desequilíbrios ocasionais no comércio entre países do Mercosul. Não haverá recusa total da proposta brasileira, mas pontos importantes serão contestados nos próximos dias, segundo o correspondente do Estado em Buenos Aires, Ariel Palacios.

A sugestão do governo brasileiro, embora insuficiente para as pretensões argentinas, já representa uma concessão importante. Em princípio, não se justifica a adoção de um sistema especial de salvaguardas para o Mercosul, que é oficialmente uma união aduaneira, criada para aperfeiçoar e não para limitar a integração comercial de seus sócios.

Deveria ser suficiente o mecanismo de salvaguardas proporcionado pelo Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt) de 1994, incorporado no conjunto de normas da Organização Mundial do Comércio.

De acordo com essas normas, um país poderá recorrer a salvaguardas contra a importação de um determinado produto quando os volumes comprados crescerem tanto que as compras causem ou ameacem causar danos graves ao setor nacional produtor de bens similares ou diretamente concorrentes. Mas a adoção dessas medidas implica investigação, apresentação de provas e notificação às partes interessadas.

Se esses cuidados são considerados necessários quando se trata, por exemplo, do comércio entre a Argentina e a Tailândia ou o Tajiquistão, por que seriam dispensáveis quando o intercâmbio ocorre entre sócios de uma área de livre comércio ou de uma união aduaneira? O critério razoável seria o oposto: os parceiros deveriam ter uma preocupação maior com a preservação do livre comércio.

O governo brasileiro, cedendo à pressão argentina para a adoção de um regime de salvaguardas para o Mercosul, propôs que o sistema seja temporário, que as decisões sejam compartilhadas entre os parceiros envolvidos e que o mecanismo não opere de forma automática. Nenhuma dessas condições, segundo apurou o correspondente do Estado, foi bem recebida pelas autoridades argentinas.

O governo do presidente Néstor Kirchner parece empenhado em radicalizar, sob a capa de um acordo com os parceiros do Mercosul, as práticas protecionistas que foram fartamente usadas no ano passado. Várias vezes, durante 2004, o governo argentino impôs ou ameaçou impor barreiras à importação de produtos brasileiros, alegando a ocorrência de uma invasão do mercado local. Essa invasão nunca passou, na maior parte dos casos, se não na totalidade, de uma recuperação das vendas brasileiras, sustentada pela reativação da economia argentina depois de vários anos de recessão.

O governo brasileiro tolerou as investidas protecionistas, evitando a polêmica e estimulando o setor privado brasileiro a ceder ou, no mínimo, a negociar por sua conta com os empresários argentinos. Estes foram sempre respaldados pelas autoridades de Buenos Aires.

O governo argentino tentou enfiar o tema das salvaguardas na pauta do Mercosul, para discussão durante a reunião presidencial de Ouro Preto, em dezembro. A discussão foi adiada para o final de janeiro e novamente não houve acordo, mas o assunto foi incorporado na agenda.

Aceitando o protecionismo argentino, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurou, ostensivamente, cooperar com o país vizinho e prevenir uma fratura mais grave no Mercosul. O presidente Lula continua a acreditar, segundo suas palavras, no valor estratégico do bloco. Além disso, o Mercosul é parte negociadora de acordos de livre comércio. Seus sócios não podem, oficialmente, negociar acordos desse tipo isoladamente. Não convém, portanto, que o bloco se apresente enfraquecido por dissensões internas diante de interlocutores como os Estados Unidos ou a União Européia. O presidente Néstor Kirchner parece ter uma opinião diferente. É possível que o sucesso na renegociação pós-calote o estimule a continuar atropelando os compromissos internacionais. A tolerância demonstrada pelo presidente Lula pode ser um estímulo adicional.