Título: Jobim é contra aborto sem BO
Autor: Lisandra Paraguassú,Mariangela Galluci
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2005, Vida &, p. A14

O Ministério da Saúde decidiu autorizar o aborto no Sistema Único de Saúde (SUS) em mulheres vítimas de estupro mesmo que elas não tenham o boletim de ocorrência feito pela polícia para comprovar a violência. A decisão faz parte da nova política de direitos sexuais e reprodutivos que será lançada este mês pelo governo federal. Já criou polêmica e sua validade jurídica foi contestada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim. "Esse é um problema de saúde pública. Problemas decorrentes de abortos são a quarta maior causa de mortalidade materna no País", disse a diretora de ações estratégicas do ministério, Teresa Campos. A norma, segundo a diretora, pretende facilitar o acesso das mulheres que sofrem violência e humanizar o atendimento nos hospitais. "A exigência do BO dificulta o atendimento e atrasa o tratamento. Vamos orientar as mulheres a fazerem o registro, mas não obrigá-las", disse.

Até agora, uma norma do ministério editada em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso, previa a exigência do BO para comprovar o estupro. Com a decisão do ministério, bastará que a mulher informe o estupro ao médico, que deverá seguir um protocolo para reunir as informações sobre o caso. "A paciente será responsável pelas informações que prestar. Se estiver mentindo poderá responder criminalmente por isso", explicou Teresa.

O Código Penal não exige o BO para que a mulher faça o pedido de aborto em caso de estupro. Também não há exigência legal de que ela registre ocorrência em caso de violência. Muitas preferem não registrar o crime, na maior parte das vezes por medo ou vergonha.

A nova norma prevê que os hospitais tenham apoio psicossocial para as mulheres e aconselhamento jurídico para que elas procurem a polícia. Mas, mesmo que se recusem fazê-lo, diz a texto, o hospital não poderá negar o atendimento. O protocolo de atendimento prevê que os médicos façam um histórico do caso, registrem todos os dados da vítima e as circunstâncias, além de pedir os exames físicos e de gravidez. Esses dados ficarão registrados no hospital.

CONSEQÜÊNCIA JURÍDICA

A norma alerta os médicos que, mesmo no caso de a paciente estar mentindo sobre o estupro, os profissionais de saúde não poderão ser processados por terem feito o aborto. O Código Penal prevê que a pessoa que comete uma infração ou crime sendo enganado não pode ser responsabilizado por ela. Teresa Campos afirma que a nova regra foi revisada por advogados e não tem qualquer problema jurídico.

Não é o que pensa o presidente do Supremo, Nelson Jobim. Ela afirma não ter validade a norma do ministério que isenta os médicos. "Não tem valor ato do Executivo dizendo que determinado assunto não tem conseqüência jurídica. Tem de estar na lei ou em decisão judicial", disse. Assim, apenas uma lei aprovada pelo Congresso Nacional ou uma decisão da Justiça poderiam isentar o médico de responsabilidade, mesmo se a paciente tiver mentido sobre a violencia sexual.

EXIGÊNCIA POLÍTICA

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) discutirá a questão na segunda-feira. Para o advogado Luiz Kignel, a nova norma desburocratiza um direito. "O BO inibia a declaração falsa de estupro, mas não garantia que a mulher não estivesse mentindo. Agora, sempre é bom lembrar que devemos partir do pressuposto que a pessoa fala a verdade."

Segundo ele, a exigência do documento é mais política que jurídica, "fruto da pressão da Igreja contra o aborto". De acordo com o advogado, sem o BO será mais fácil para uma mulher não estuprada tentar fazer o aborto na rede pública de uma gravidez indesejável. "Mas nada impede que o hospital comunique a polícia quando receber a solicitação da mulher."

O médico também pode se recusar a fazer a interrupção da gravidez, já que o Código de Ética Médica lhe assegura o direito de não realizar atos médicos que sejam contrários a sua consciência, mesmo que sejam legais.