Título: A vida cruel das meninas do sertão
Autor: Marcelo Onaga
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/02/2005, Metrópole, p. C1

Situada no sertão de Pernambuco, na divisa com o Piauí, Araripina é a maior produtora nacional de gipsita, matéria-prima para a fabricação do gesso. O minério movimenta a economia local e o fluxo de caminhões na cidade mostra isso. Todos os dias, dezenas de carretas chegam à região ou saem dali. Buscam e levam cargas, negociadas em postos à beira da estrada. Nesses postos, motoristas fazem suas refeições, tomam banho e se preparam para as festas de Araripina e de cidades vizinhas, principalmente nos fins de semana. É nas festas e nos postos que se desenrola outra atividade comum na região: a prostituição. Garotas, muitas vezes menores de idade, negociam com os caminhoneiros e, poucos minutos depois, sobem na boléia dos caminhões para um programa rápido. Fazem sexo em troca de R$ 10, de um prato de comida, às vezes de um perfume ou de uma roupa. Há casos mais degradantes. Na vizinha Ouricuri, a cerca de 60 quilômetros de Araripina, um "bar" oferecia programas com meninas menores de idade por R$ 1,99. Bar é o nome dado a prostíbulos nessas cidades. O valor seria o cachê da garota. O dono do local cobrava outros R$ 5 pela utilização de um quartinho. A história ficou famosa na região. Não por acaso. O dono do bar colocou um cartaz anunciando a "promoção". Depois de uma visita da polícia, retirou a placa. Mas continuou oferecendo o serviço das garotas. As histórias das meninas do sertão nordestino lembram muito as de suas colegas que vivem nas grandes cidades litorâneas, mostradas ontem em reportagem no Estado. Miseráveis, vivendo em famílias quase sempre desestruturadas e sem muitas oportunidades, elas acabam conhecendo nos postos de gasolina caminhoneiros que não hesitam em lhes dar uns trocados para "aplacar a saudade de casa", como muitos dizem Além do valor dos programas, há outra diferença em relação às garotas de Fortaleza, Natal e Recife: no sertão elas são ainda mais esquecidas, ainda mais invisíveis. "O problema nas grandes capitais existe, é grave, mas atrai a atenção da sociedade e das autoridades. No interior, a situação é muito pior porque pouco ou nada se faz por essas meninas", afirma Renato Roseno, coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará. "Eu bem que queria fazer outra coisa", diz Janaína (nome fictício), garota de 19 anos que se prostitui desde os 13. Mãe de uma menina de 2 anos, fruto de um programa com um caminhoneiro paulista (ela diz ter certeza de que o pai é ele), Janaína conta que conheceu a prostituição quando ia até o posto pegar roupas de caminhoneiros para a mãe lavar. "Eles me ofereciam dinheiro, presentes para transar com eles. Um dia eu aceitei." E não parou mais. Todas as noites ela deixa a filha na casa da mãe e vai para o posto. "Agora que tenho ela (a filha) é que eu não posso parar mesmo. Se parar, como vou comprar comida?", pergunta. O sexo entre crianças e adolescentes, pago ou não, é um grande problema na região. Em um só mês, o hospital de Araripina registrou 194 consultas de adolescentes grávidas. "As meninas vivem na miséria, não estudam e querem roupas, tênis e outros objetos de consumo. Para piorar, a oportunidade está muito próxima e muitas acabam entrando para a prostituição", diz Márcia Araújo Leite, coordenadora na cidade do Programa Sentinela, uma ação do governo federal para combater a exploração sexual de crianças e adolescentes. Os caminhoneiros se recusam a falar sobre o assunto. Quase nunca são incomodados pela polícia. "Não há gente suficiente para ir atrás disso. Temos de cuidar de outros crimes, assassinatos, e não sobra tempo", afirma um dos poucos investigadores da polícia de Araripina. Restam o Conselho Tutelar e o Sentinela. Seus integrantes tentam tirar as meninas da prostituição e evitar que outras entrem. "Mas é difícil. Há uma resistência muito grande", diz Márcia.