Título: Idos de muitos marços
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Passaram-se 800 dias do mandato que o atual governo recebeu das urnas. Quinhentos dias mais e a campanha presidencial, ora em pleno andamento no governo, entrará em sua reta final. Para os que se angustiam, em Brasília, à espera de mudanças ministeriais, se T. S. Eliot fosse brasileiro, talvez tivesse designado março, e não abril, como "o mais cruel dos meses". E, séculos antes, Shakespeare já havia feito um vidente alertar Júlio César: "Cuidado com os idos de março." No antigo calendário romano, o dia 15 daquele mês, data do assassinato de César no Senado. O Brasil dos últimos 40 anos teve tantos marços sob governos militares (1965-1985) quanto marços sob governos eleitos (1985-2005). Olhando em retrospecto, o vidente de Shakespeare teria razão no seu alerta sobre cuidados com muitos dos idos de março que se aproximavam. É inútil especular sobre o que mais poderia ter dito o vidente, por exemplo, a Goulart sobre cuidados com a chegada das águas de março de 1964. Ou a Castelo e Costa e Silva sobre março de 1967. Ou a Geisel sobre março de 1974, após o primeiro choque dos preços do petróleo. Ou a Figueiredo sobre a carga de seus seis marços, após Volcker, o segundo choque do petróleo e o fim de um ciclo de crescimento com endividamento externo. O destino foi cruel com Tancredo, presidente eleito e não empossado, nos idos de março de 1985: o vidente referia-se a outro tipo de cuidados, que não aqueles dos quais Tancredo tão bem soube cuidar. Não foi fácil nenhum dos marços de Sarney, mas, em 1989, quem tinha menos de 47 anos votou para presidente pela primeira vez na vida. O vidente poderia ter alertado Collor de que era vã pretensão acertar um único tiro certeiro na testa da fera nos idos de março de 1990; e que a falta de cuidado poderia custar-lhe alguns dos marços a que teria direito. Talvez tenha avisado Itamar sobre os cuidados que seriam necessários para com a célula embrionária do Real, lançada em março de 1994. E alertado Fernando Henrique para cuidados com os marços de 1995, 1998,1999 e 2002. Seguramente alertou Lula para os enormes cuidados com seu primeiros dois marços, em 2003 e 2004. Deve ter dito algo para inspirar os cuidados que vem demonstrando o governo com os idos de março de 2005. Estes cuidados têm assumido sua face mais visível com as complexas operações de montagem do novo Ministério, que vem tendo lugar há meses e cujo anúncio final vem sendo sucessivamente postergado. Seu objetivo maior é procurar assegurar elegibilidades e governabilidades. O objetivo da reeleição em 2006 é explícito, não deixa margem a ambigüidades e, resguardadas as leis e certas sobriedades em práticas e comportamentos, faz parte das regras do jogo democrático. O objetivo da governabilidade tem duas vertentes. Uma diz respeito à busca de consolidação da base do apoio político-partidário do governo no Congresso, o que demandaria composições com amplo leque de forças partidárias e individuais para evitar certas coisas, permitir outras e, idealmente, procurar fazer avançar uma agenda legislativa modernizadora ao longo dos próximos 500 dias (dos quais apenas 200 e poucos serão de trabalho efetivo em termos de sessões plenárias no Congresso, por razões conhecidas). A outra vertente da governabilidade diz respeito à extensão em que as mudanças a serem anunciadas nos próximos dias, no âmbito do Executivo, possam aumentar o (sempre relativo) grau de eficiência operacional da máquina governamental em seus vários setores. Em particular na área social, na qual, por larga margem, maior é a distância entre as duras realidades do País e as expectativas de extraordinários avanços em termos de resultados concretos, geradas pelas exacerbadas promessas da campanha presidencial anterior. O vidente da peça de Shakespeare mais uma vez acertaria se antecipasse que haverá mais cuidado com promessas em 2006, quando o governo atual terá construído uma herança de quatro anos, que talvez possa ser avaliada mais por resultados efetivamente alcançados que por esforços retóricos e novas profecias sobre o futuro. O vidente de Shakespeare representa mais que uma metáfora sobre previsões e seus tempos. No texto, César tem sua atenção despertada para a voz que o chama em meio ao alarido da multidão. Ao perguntar quem o chamava ("Who is it in the press that calls on me?"), ouve a frase famosa, chama o vidente à sua presença, ouve a frase uma segunda vez e despacha o vidente como um sonhador. César volta a encontrá-lo à porta do Senado no dia de sua morte, diz-lhe que os idos de março chegaram e o vidente responde: "Sim, César, mas não se foram" (isto é, o dia 15 de março não terminara). O vidente estava certo, mas, como no mito de Cassandra, fadado a não ser acreditado. Mais importante, o vidente de Shakespeare é uma metáfora sobre os cuidados que se devem ter com a opinião pública, que é, como disse Millôr Fernandes, aquilo que se publica, embora, para Galbraith, "discursos de improviso jamais deveriam ser publicados e, se publicados, não deveriam ser lidos". A palavra "press", em inglês antigo, era sinônimo de multidão ("crowd"). Cuidados com "os idos de março" significa também os cuidados que se devem ter com a opinião pública, o que a imprensa sempre acaba por refletir por meio do livre debate de opiniões - que deve sempre respeitar os fatos, as pessoas e suas idéias. Estamos ainda por chegar aos idos de março de 2005, embora muitos, em movimentação e postura, já se comportem como se estivessem em março de 2006 (e pensando em março de 2010). Mas, como diria Rumsfeld em seus raros momentos filosóficos, "há coisas que sabemos que sabemos, há coisas que sabemos que não sabemos, há coisas que não sabemos que sabemos e há coisas que não sabemos que não sabemos". O que importa é que Shakespeare, o "inventor do humano", segundo Bloom, sempre nos ajuda a lembrar, por intermédio de seu vidente, o cuidado que todos devemos ter com os idos dos marços que virão.