Título: 'China sofre o que há de pior nos dois regimes'
Autor: Jehangir Pocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Internacional, p. A21
Wang Hui, integrante do movimento da nova esquerda chinesa, é professor de humanidades na Universidade Tsinghua e editor do jornal Du Shu. Ele falou a Global Viewpoint sobre a nova esquerda e o crescente abismo entre ricos e pobres na China - um dos principais temas da sessão anual do Congresso Nacional do Povo, que termina amanhã em Pequim.
No contexto chinês, o que é a nova esquerda?
Hoje, a China está presa entre os dois extremos de um socialismo perdido e o capitalismo crônico. E sofrendo do que há de pior nos dois sistemas. Temos de encontrar uma via alternativa. Essa é a grande missão de nossa geração.Em geral, sou a favor de orientar o país na direção de reformas de mercado, mas o desenvolvimento da China deve ser mais igualitário, mais balanceado. Não devemos dar total prioridade ao crescimento do PIB, à extinção dos direitos dos trabalhadores e ao meio ambiente. O objetivo comum da nova esquerda da China é criar um entendimento de todas as implicações das atuais políticas da China. Acho que se as pessoas virem o que está acontecendo de verdade, podem ficar menos empolgadas com as reformas. A política econômica abertamente exportadora da China, por exemplo, está causando alguns problemas sérios, como desenvolvimento regional desequilibrado e abismos salariais. As exportações chinesas em proporção ao seu PIB são muito maiores do que nos EUA e Japão. De fato, é uma situação engraçada. Normalmente um país grande tem o benefício de um grande mercado doméstico. Mas na China não é este o caso, o que significa que nosso grande mercado é subdesenvolvido. Nossa total dependência dos mercados exportadores significa que nosso povo é muito pobre para comprar produtos. Então, faz sentido que os salários chineses precisem ser aumentados. Um passo prático é eliminar completamente o Crédito de Imposto de Importação, já reduzido sob pressão americana, que dá aos exportadores chineses isenção fiscal e tira a produção do mercado doméstico.
Jiang Zemin, ex-presidente da China, pôs o país nas linhas do modelo americano. Isso está mudando?
Sim, já que a China só olhava para os EUA. Hoje, está claro, o governo de Hu Jintao parece muito mais voltado para o mundo - não só para os EUA, mas para a Europa, América Latina, Índia e outros lugares. Hu Jintao e Wen Jiabao estão mais preocupados com a igualdade social e o meio ambiente. Basicamente, estamos assistindo à reorientação das políticas do último governo.
Eles também estão rejeitando a teoria das Três Representações de Jiang Zemin, que busca dar poder às forças produtivas da sociedade chinesa - os empreendedores - e chegou a ser vista uma espécie de infiltração da economia reaganiana?
As Três Representações foram usadas por muitas pessoas para dizer que a China deveria ter um crescimento de PIB a qualquer custo - que estaria tudo bem mesmo se os trabalhadores que construíram um grande edifício nunca conseguissem seu salário. Mas Wen Jiabao interveio pessoalmente em nível nacional para tentar fazer com que os trabalhadores recebessem seus salários, e uma grande parte deles foi paga graças à sua intervenção. Em um certo sentido, é risível que o primeiro-ministro do país tenha de intervir para que os trabalhadores recebam seus salários. Mas, por outro lado, é um símbolo das preocupações do atual governo. Por exemplo, essas coisas não aconteciam no governo anterior. Jiang Zemin não fazia isso.
Qual é o pensamento econômico dominante na China hoje?
Em geral, há uma diferença entre os chineses médios sobre economia. Em parte é cultural, em parte é social. Hoje, o economista mais popular e influente na China é o professor da Universidade de Hong Kong Steven Cheung. Seu famoso exemplo é sobre um grupo de remadores que transporta pessoas de uma margem a outra de um rio. Todos eles são donos do barco, mas contratam pessoas para chicoteá-los - porque temem que alguns deles possam tentar não remar. Mas, se nenhum deles remar, não haverá negócio, então eles concordam em contratar alguém para vigiá-los e chicoteá-los para o bem do grupo. Então, Cheung diz que os trabalhadores precisam que uma pessoa os vigie ou não vão trabalhar. Segundo ele, o mais importante é criar um capitalista que vigie os trabalhadores e cuide do negócio.
Como avalia isso?
Sei que isso é a teoria econômica popular - que a propriedade privada é o melhor incentivo. Bem, os capitalistas também podem se encostar. A realidade é que os proprietários estão sempre saqueando os próprios negócios. Veja a Enron. Essa é a teoria de George Akerlof (o economista e ganhador do Prêmio Nobel). É um mito que os capitalistas não vão roubar da própria empresa, porque não são donos de toda a empresa. A idéia é muito simples. O proprietário de uma firma só está interessado nos bens líquidos, a parte que pode ser redistribuída aos acionistas. Mas a firma tem um total de bens acima e além dos bens líquidos. São as dívidas a bancos e também as dívidas implícitas aos trabalhadores - como pensões e benefícios. Sob certas condições, um proprietário pode saquear tanto a dívida implícita quanto a explícita da firma.
Quem são os economistas ou pensadores que guiam suas idéias?
John Stuart Mill. Também Joseph Stiglitz e Amartya Sen. E, claro, Akerlof.
A idéia européia de social-democracia é um modelo para a nova esquerda da China?
Gosto do sistema alemão. Mas há uma grande diferença. O modelo europeu de democracia social é baseado em impostos altos como ferramenta de redistribuição e bem- estar social. Em outras palavras, a preocupação do sistema europeu já é com redistribuição, e não sobre tentar evitar as iniqüidades de uma sociedade injusta em primeiro lugar.