Título: Assentamento do Incra é novo problema
Autor: Evanildo da Silveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Vida &, p. A27

Como se não bastassem os problemas que já enfrenta, o Parque Nacional da Serra da Capivara está agora diante de nova ameaça. Um projeto do Incra prevê o assentamento de cerca de 1.100 famílias de sem-terra, numa área de 68 mil hectares, divididas em duas glebas, entre esse parque e o Parque Nacional da Serra das Confusões. O projeto vai comprometer o corredor ecológico entre as duas áreas protegidas, que os animais utilizam como rota de migração. A presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), Niède Guidon, diz que os assentamentos vão acabar na prática com o corredor. "A ocupação da área, as roças e as cercas vão impedir que os animais circulem entre os parques", diz. "Além disso, com mais pessoas morando na região, as pressões sobre os parques vão aumentar. Vai haver mais desmatamentos, mais queimadas, mais caçadores."

Nem a portaria do Ministério do Meio Ambiente (MMA), baixada na sexta-feira e que cria oficialmente o corredor ecológico, vai resolver a situação, segundo Niède. "Ela veio tarde", diz. "As pessoas já estão na área desmatando, ateando fogo e caçando os animais que migram entre os dois parques. É preciso uma ação imediata para evitar que tudo seja destruído."

Entre as pessoas às quais se refere Niède está Amâncio da Luz de Brito, de 53 anos. Casado com Maria Aparecida de Brito, de 49, pai de sete filhos, ele está acampado, com outras 87 famílias, às margens da Rodovia PI-140, próximo ao limite oeste do Parque da Serra da Capivara, à espera do lote prometido pelo Incra. Brito conta que, assim como todos ali, antes de chegar ao local, ocupou por cinco anos a Fazenda Guzerá, 45 quilômetros ao norte dali.

Atendendo a solicitação do Ibama e da Fumdham, a Justiça os expulsou de lá. "Então fomos morar em São Raimundo Nonato", conta. "No ano passado, o Incra nos procurou e disse que nos assentaria aqui. Por isso viemos para cá e estamos esperando."

Assim como seus colegas de acampamento, ele reclama muito da "doutora Niède". "Nunca vi pessoa que não gosta de gente como ela", afirma. "Ela prefere proteger uma cobra do que um ser humano."

A presidente da Associação dos Pequenos Produtores dos Gerais, que reúne os ex-posseiros da Fazenda Guzerá, Maria Sineide Marques de França, garante que nenhum dos acampados quer dinheiro. "Queremos apenas terra para trabalhar", assegura. "Ao contrário do que diz a doutora Niède, entre nós não há nenhum bandido nem caçador. Somos todos trabalhadores."

Para provar o que diz, Maria Sineide mostra um título de propriedade da terra, concedido pelo Instituto de Terras do Piauí (Interpi) a todos os posseiros da Fazenda Guzerá. "Todos os anos temos de declarar a posse desta terra para a Receita Federal", diz. "Se a gente não fizer isso, somos multados. Mas a gente só tem essa terra no papel. Por isso, a gente está lutando por terra de verdade."

Os acampados demonstram ter muita mágoa da "doutora". "Ela humilha a gente", queixa-se Francisco dos Santos Oliveira, de 29 anos, pai de dois filhos. "Ela chama a gente de bandidos, de miseráveis. Fala que a gente caça os animais. Só que até hoje nunca pegaram ninguém daqui caçando."

Maria Sineide garante que ninguém quer destruir o parque. "Ao contrário, nós também gostaríamos de visitá-lo, mas nunca podemos ir porque não temos dinheiro para pagar o ingresso (a entrada custa R$ 3,00)", diz. "A doutora Niède deveria convidar a gente para conhecer o parque. Ele não deveria ser só para turistas de fora, mas para os daqui também."

IMPASSE

Esse impasse poderia ter sido evitado se o governo brasileiro tivesse atendido às recomendações da Unesco, em 2002, de criar oficialmente o corredor. O pedido para isso foi do próprio governo, por meio do Ministério do Meio Ambiente. Naquele ano, o MMA solicitou à Unesco que o conjunto Serra da Capivara-Serra das Confusões fosse declarado Patrimônio Misto da Humanidade, Natural e Cultural.

Para atribuir esse título, no entanto, a Unesco exigiu, além da criação do corredor, que o Parque Nacional da Serra das Confusões fosse dotado da mesma infra-estrutura que tornou o da Serra da Capivara um dos mais bem estruturados e organizados da América do Sul. "Apesar de ter sido ele próprio que fez a solicitação, o governo não fez nada para atender às exigências da Unesco", critica Niède. "Agora a área está sendo ocupado e degradada."

Ela explica que, diferentemente de um parque nacional, num corredor ecológico não é necessário que as pessoas que ocupam a área saiam. "Elas podem continuar vivendo nele, desde que respeitem determinadas normas", diz . "Como, por exemplo, não construir cercas, para não impedir a circulação dos animais, e explorar a terra de maneira sustentável, sem degradar o ambiente."

INCRA

O diretor do Incra, Marcos Kowarick, diz que o governo não vai assentar posseiros se houver risco de impacto ambiental. "Pretendemos definir regras claras de uso do solo e da vegetação no corredor", explica. "Isso faz parte do nosso compromisso de definir a utilização sustentável das terras próximas aos parques. Queremos impedir, por exemplo, que as pessoas continuem caçando nos parques e mantendo a agricultura do fogo, que acaba com o solo e a vegetação."

O secretário de Áreas Protegidas do ministério, Maurício Mercadante, também defende os assentamentos. Ele reconhece, porém, que se o projeto não for bem conduzido pode prejudicar a conservação dos sítios arqueológicos. Para evitar problemas, segundo ele, haverá uma administração integrada da região entre os governos federal, estadual e a Fumdham. "Vamos criar um mosaico com as três áreas - os dois parques nacionais e o corredor ecológico - que terá um conselho para administrar todas as questões relativas à proteção ambiental", diz.

Niède garante que não tem nada contra a permanência das famílias que moram na área há muito tempo nem contra a regularização das terras que ocupam. "Essas famílias não passam de 200", diz. "Mas na lista do Incra, há muitas pessoas de outras regiões e várias que não são agricultores, que estão sendo incentivadas a ocupar o corredor. Há até empresários e funcionários públicos."

Segundo a presidente da Fumdham, uma verdadeira indústria da invasão está sendo alimentada com as famílias de São Raimundo Nonato. "Elas vão para o local a fim de ganhar R$ 15 mil do Incra, quando o assentamento for criado." Para verificar a situação, a Assembléia Legislativa do Piauí criou na quinta-feira uma comissão, composta por seis deputados e técnicos dos órgãos envolvidos com a questão, que visitará o local nesta semana.

Para Niède, não há nem o consolo de que os assentamentos venham a resolver o problema social das pessoas que ocupam ou venham a ocupar a área. "A terra aqui não serve para a agricultura", explica. "É um areão. Depois de desmatada, a área vai virar um deserto. O projeto de assentamento vai criar, na verdade, uma favela rural. As pessoas vão continuar miseráveis."