Título: Um silêncio difícil de amordaçar
Autor: Raimundo Carrero
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Aliás, p. J3

A eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara traz à tona um fantasma com o qual as sociedades contemporâneas estão se debatendo: a importância de separar fé religiosa e decisão política. Católico praticante, Cavalcanti tem manifestado, publicamente, suas posições contrárias ao aborto em qualquer caso. Temos assistido no mundo inteiro ao avanço de forças fundamentalistas que promovem a superposição entre fé e política, sinal de retrocesso democrático, de recuo nas liberdades individuais e nos direitos humanos. Felizmente, não foi o que aconteceu na votação da lei da biossegurança, porque, embora muitos religiosos sejam contrários ao uso de embriões nas pesquisas, prevaleceu o interesse geral da sociedade. Esperamos que o mesmo ocorra, seja na comissão tripartite que discutirá a legislação relativa ao aborto, seja na decisão do STF, a respeito de fetos anencefálicos. Tais posições mostram-se, de fato, mais adequadas a uma sociedade em que os avanços democráticos estão cada vez mais consolidados. Segundo pesquisa Católicas pelo Direito de Decidir/Ibope com 1.293 católicos em todo o País, 86% consideram que o Legislativo, o Judiciário e o Executivo devem tomar decisões e legislar com base na diversidade de opiniões existentes. Apenas 10% acreditam que parlamentares e juízes devem se pautar pelos ensinamentos da Igreja.

São números muito expressivos num momento em que o debate sobre a necessidade de avanços na questão do aborto ganhou a sociedade. Por isso, causa espanto a contestação do presidente do STF, ministro Nelson Jobim, da norma técnica do Ministério da Saúde que autoriza vítimas de estupro a fazer aborto sem apresentação de boletim de ocorrência. Existem 46 hospitais no País autorizados a agir assim há mais de 15 anos. Essa foi uma conquista importante para as mulheres.

No contexto dessa discussão, ainda que a voz da Igreja deva ser indiferente para um Estado laico, ela é relevante para uma considerável população: mais de 80 milhões que se declaram católicos. Nesse sentido, por um dever de justiça e lealdade para com suas e seus fiéis, a Igreja Católica estaria obrigada a informar sobre as possibilidades éticas e religiosas da decisão por um aborto.

Uma antiga e complexa doutrina, por exemplo, o Probabilismo, fala na obrigação da informação aos fiéis de uma divergência doutrinária quando há teólogos que sustentam posições divergentes, como é o caso do recurso ao aborto. No campo da Teologia moral, há diversidade interna em relação a práticas aceitáveis quanto à sexualidade e à reprodução humanas. Já nos anos 70, estudiosos católicos defendiam a validade moral do recurso ao aborto, em determinadas circunstâncias. Alguns deles, cujo pensamento ficou conhecido como "escola francesa", defendiam que são as relações que humanizam, não a biologia. Com isso, propunham uma compreensão da existência de uma pessoa de pleno direito não coincidente, obrigatoriamente, com o momento da concepção, mas com a aceitação do concepto para a vida. O caráter plenamente humano do ato consciente e desejado -- ainda que não planejado - de fazer uma nova pessoa, de trazê-la à vida e ao mundo, à sociedade, viria, dizem eles, não de uma imposição biológica, mas dessa característica única dos seres humanos, que é a possibilidade da escolha, vale dizer, a liberdade. É relevante reafirmar que mulheres são pessoas humanas com capacidade de eleição, de pensamento, de desejo, e, por isso mesmo, sujeitas de direitos e de deveres. Reduzi-las à sua capacidade biológica de gerar é negar-lhes a condição humana plena.

Informar o público católico dessa diversidade de opinião no seio do pensamento teológico permitiria às mulheres católicas uma decisão informada religiosamente, no momento crucial de escolher, ou não, pela interrupção de uma gravidez não planejada ou indesejada. Permitiria que juízes e médicos católicos apoiassem a decisão de uma mulher pelo aborto. Permitiria, ainda, que parlamentares católicos votassem a favor de leis que regulamentem a prática do aborto, respeitando os direitos democráticos de todas as cidadãs, mas também sem contrariar os princípios de sua religião.

Finalmente, convém repetir: ainda que a existência de argumentos religiosos que apóiem a decisão por um aborto seja importante para fiéis dessa religião, não podemos nos esquecer, sobretudo, de que o Estado laico é condição fundamental de democracia, garantia de pluralidade e conquista a ser garantida.