Título: O relojoeiro que traiu o destino
Autor: Raimundo Carrero
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Aliás, p. J3

Incapaz de andar e assoviar ao mesmo tempo - dizem do deputado Severino Cavalcanti, os seus inimigos. Líder, católico e lutador - ressaltam os admiradores. Mas, na verdade, o atual, polêmico e contraditório presidente da Câmara dos Deputados jamais passou de um político obscuro em Pernambuco. A eleição deve ter sido, para ele próprio, uma surpresa e um susto, porque desejava apenas ser relojoeiro. Talvez um pouco menos: queria consertar relógios. Teve, portanto, de trair o destino. E o destino ultrajado não perdoa. Na juventude, chegou a embarcar num ônibus para São Paulo, onde se incorporou à onda de camelôs que começava a invadir as ruas da capital, para se instalar numa banca, com direito a lupa, cartaz, placa e tudo: "Conserta-se relógios". Hábil e meticuloso na sutil arte de acertar ponteiros, ganhou fama de competente. Mas deve ter ouvido uma voz estranha coçando o ouvido: "Com tanta habilidade assim é melhor ser político, Severino". Arrumou as coisas, pegou o ita de volta.

Talvez tenha começado aí a possível eficiência de articulador - os ponteiros não mentem - nos corredores sombrios do poder. É claro: para chegar à presidência da Câmara dos Deputados, de maneira tão surpreendente e inusitada, só mesmo consertando relógios.

Sem correr o risco de João Doido, de Taperoá, que andava orgulhoso e maltrapilho pelas ruas com um belo relógio sem ponteiros no pulso. Orgulhoso e maltrapilho, mas sem suportar brincadeiras. Doido mal-humorado. Chegou à cidade o novo delegado, sargento da Polícia Militar da Paraíba, e, como toda autoridade que se preze, tomou posse com farda de gala, galões dourados e botões de madrepérola, sapatos e talabarte pretos, todo de branco. E faceiro.

Depois das pompas, encontrou o doido, só e abusado, no coreto, exibindo o relógio. "O senhor pode me fazer o obséquio de dizer que horas são?" João respondeu: "Estou vendo que Vossa Excelência, tão bem vestido e tão bem falante, é novato na cidade, do contrário não se metia a perguntar uma besteira dessa". "Por quê?", assustou-se a autoridade. "Porque o relógio não tem ponteiro" - acrescentou, mordendo as palavras, quase soletradas, controlando a raiva e já pensando em se retirar. O tenente insistiu: "E o que é que adianta?". "Não adianta, mas também não atrasa."

O relógio de Severino Cavalcanti adiantou. Com algum atraso, é verdade. Atraso que esteve bem visível, em 1978, quando ele exigiu que os militares, então no poder, expulsassem o padre italiano Vito Miracapillo, da paróquia de Ribeirão, uma pequena cidade encravada na Zona da Mata de Pernambuco, reduto do conservadorismo e da tradição religiosa, perto do Recife. O sacerdote se recusara a celebrar uma missa pela independência do Brasil, num festejado 7 de setembro. Foi bater na Itália e nunca, nunca mais voltou. Severino Cavalcanti passou a ser chamado de Zito Miracapillo. Sim, porque é chamado de Zito, desde as aventuras com relógios. Assim, simplesmente: "Zito Relojoeiro".

Algo curioso, porque no Nordeste - ou no Brasil, quem sabe - todo Severino é Biu. O que gera desconforto para algumas pessoas, sobretudo para jornalistas amadores do interior. A Gazeta de Oritimbó, outra cidade do interior pernambucano, em pleno tiroteio jornalístico em torno de Bill Clinton, na época do colóquio amoroso com Monica, circulou com a manchete: "Severino Clinton flagrado no lusco-fusco da Casa Branca".

O prefeito zangou-se com o editor: "Que história é essa de chamar Clinton de Severino?". O homem pareceu impaciente: "Não vou tratar o presidente dos Estados Unidos pelo apelido". "Mas o nome dele é Bill, não é apelido", reiterou o político. "É não, senhor, o nome verdadeiro dele é Severino, porque todo Severino é Biu. Eu sou esperto, doutor." Na esquina o professor de inglês do Ginásio Municipal observou: "Duas cavalgaduras relinchando".

De volta a Pernambuco, Severino foi eleito prefeito de João Alfredo, outra cidade pequena e cujo nome homenageia o conselheiro do Império. Para isso, foi preciso reunir-se a usineiros, fornecedores de cana, empresários. Nunca foi um pobre, um miserável. Sempre nas proximidades do poder, ainda que meramente municipal, formava aquela classe média nordestina, que se acostumou a não ter nada, tendo tudo. Desde que obediente às leis do patriarcado rural.

Nesse ponto, o oposto absoluto do presidente Lula, que nasceu e se criou no mato, feito se diz aqui. No mato significa na roça do agreste de Pernambuco, onde campeia a fome. Sem assistência, sem auxílio, sem nada. Sem saúde e sem educação. Comendo quando possível, banhando-se nem sempre. Dali, em geral, não saíam pobres políticos, porque não aspiravam a coisa alguma. Talvez a um prato de feijão com arroz. Nos últimos tempos as coisas mudaram um pouco. Mas não completamente.

Lula, com os pais e os irmãos, teve de viajar para São Paulo num pau-de-arara - caminhão velho com a carroceria coberta com panos - porque não podia pagar uma passagem de ônibus. Com Severino foi diferente: parecia um nababo no moderno ônibus de linha porque, bem ou mal, já era um comerciante - camelô, com certeza -, e podia cometer o desfrute de gastar algum dinheiro. Contido. Faz parte dessa ordem folclórica de seres que andam pelas ruas com camisas coloridas, botas de cano alto, rádio portátil - às vezes nem tão portátil assim - no ouvido e óculos escuros. Eles povoam a ficção brasileira, sobretudo no romance do baiano Antônio Torres, Essa Terra. Folclóricos, mas terrivelmente dramáticos. Às vezes trágicos. Uns ficam doidos, e outros se elegem presidente da Câmara de Deputados. Faz alguma diferença?

Depois de prefeito, Severino Cavalcanti voltou a ouvir a voz. Elegeu-se deputado estadual. Foi nessa condição que se aliou aos militares para perseguir comunistas, estudantes esquerdistas, padres progressistas. Cortou o cabelo à Família, Tradição e Propriedade, passou a usar roupas frouxas e a marchar pelas calçadas. Afinal, aliado de usineiros e de fornecedores de cana, também precisava unir-se aos militares. Era a segunda oportunidade de ascender na vida. Quem não faz isso - ou pelo menos não fazia nos tempos do golpe militar - corre o risco de levar uma surra a cada semana e perder mais eleição do que miserável no jogo do bicho. Lula já estava em São Paulo, militava na esquerda e não se livrou da arbitrariedade: ia preso, apanhava nas passeatas, era chamado de sapo barbudo. A diferença entre o mato de Pernambuco e o cosmopolitismo de São Paulo era coisa de tão pouco, como diz o matuto.

O episódio da expulsão do padre foi comovente, mas apresentou a verdadeira dimensão do deputado. Significou muito na vida de Severino, porque foi o seu instante de glória na imprensa e nas conversas, ainda que de forma escandalosa. Tornou-se um conservador empedernido. Um sujeito de passo atrás. Dizem que anda de costas na esperança de encontrar o passado. Sem atuação no Recife, parece tatu escondido nas locas. E nunca teve destaque nos arraiais da política. Nem uma mínima relevância. Sem dúvida aprendeu com os relógios a acertar ponteiros. Silencioso e astuto.

Semana passada voltou a Pernambuco já na qualidade de presidente da Câmara dos Deputados. Recebido com festas no austero Clube Internacional, deitou e rolou. Dançou o frevo, mesmo com o paletó fechado. Os jornais do Recife publicaram a foto emblemática: Severino pulava, braços abertos e festivos, ao lado de uma passista, com uma sombrinha de frevo na mão direita, ao sabor de palhetas e metais.

E cantando, sem dúvida, os versos de Capiba: "De chapéu de sol aberto, pelas ruas, eu vou, a multidão me acompanha, eu vou..."

*Raimundo Carrero é jornalista e escritor. Em 2000, ganhou o Jabuti com As Sombrias Ruínas da Alma (Iluminuras)