Título: Refazendo a maneira de gerir a cultura
Autor: Beatriz Coelho Silva
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Aliás, p. J4

Misturar diversidades, articular contrários, harmonizar conflitos. O compositor Gilberto Gil levou os princípios de sua carreira musical para o Ministério da Cultura, que assumiu em janeiro de 2003. De início, foi criticado no próprio governo. Dois anos depois, quando a pasta completa 20 anos de criação (em 15 de março, terça-feira que vem) e até o conceito de cultura é revisto, ele faz um balanço positivo, mas não quer pensar sozinho. Na própria terça, receberá sete dos oito ex-ministros que estão vivos (Celso Furtado e Antônio Houaiss já morreram), para um almoço e um seminário em que vão avaliar a história da pasta e pensar seu futuro. José Aparecido (o primeiro deles), Aloísio Pimenta, Hugo Napoleão, Ipojuca Pontes, Sérgio Paulo Rouanet, José Jerônimo Moscardo e Luiz Roberto Nascimento e Silva (atual secretário de Cultura de Minas Gerais) já confirmaram presença no encontro. Só não irá o ministro da Cultura anterior a Gil, Francisco Weffort, que ficou nos oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Weffort explicou que está preso no Rio, devido ao início do curso de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para Gil, a história do MinC é um enredo em andamento. "Como no cinema, a imagem muda a cada dia, mas o roteiro do filme continua numa direção em que sangue, suor e lágrimas são ingredientes básicos. Se é assim em outros lugares, por que não seria no ministério?", indaga.

O ministro completa 40 anos de carreira musical em 2005 (o primeiro LP é de 1965, mas antes Elis Regina gravara Roda, Lunik 9 e Louvação) e acredita que o MinC já nasceu pioneiro, na sua visão do Estado no século 21. "O governo investidor, dos primeiros tempos dos Estados-Nação, está desaparecendo. Em vez de prover o setor, tornou-se regulador e articulador dos interesses que convivem na sociedade, especialmente os do mercado e os das políticas públicas." Ele aplica essas idéias na vida privada. Tem mais de 500 músicas, mas não pensa nelas como a herança de seus sete filhos. "Não quero essa acomodação, que eles vivam a lógica do funcionário público, mamar nas tetas."

Como o senhor avalia essas duas décadas da pasta?

O MinC foi sendo criado com o Furtado, com o Aparecido, o Pimenta e os outros. Eles perceberam o deslocamento de uma centralidade do campo técnico para o cultural, que subordinava a visão técnica à cultural. É isso que está aí hoje, o binômio cultura e desenvolvimento. Não há desenvolvimento sem cultura, não há cultura sem desenvolvimento (riso). Nossa pauta é de reinvenção institucional. Os interesses privados, de mercado, têm dimensão própria, mas têm de respeitar a dimensão das políticas públicas, necessárias em qualquer área.

Com qual dos ex-ministros o senhor se afina mais?

Aí depende. Celso Furtado teve uma importância enorme. Aparecido foi um brigador pelo ministério. Pimenta teve aquela coisa interessante da broa, o lado mineiro romântico. Rouanet foi importantíssimo. Houaiss foi o intelectual. Weffort ficou oito anos aqui. Para comemorar essas duas décadas, queria recuperar as memórias das suas gestões. Que se fale, nessa reunião, do que tem sido o MinC nesses 20 anos. Não dou conta de falar disso sozinho.

O senhor teve conflitos com a Secretaria de Planejamento a respeito do patrocínio das estatais, fundamental na área da cultura. Agora o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, a Caixa Econômica Federal, a Petrobrás e o Banco do Brasil têm planos conjuntos com o MinC. Como foi essa negociação?

Em processo, em diálogo, colocando na mesa o mapa da racionalidade, que exige o compartilhamento de movimentos e dos gastos... Por isso, quando se criticava a falta de planos do governo, eu dizia que "graças a Deus". Era preciso dar um tempo para que fossem construídos os melhores planos. Era uma equipe nova, um segmento político que chegava ao governo federal pela primeira vez, com uma aliança absolutamente nova. E os melhores planos são construídos no fluxo, e não na gestão por metas.

O senhor aprendeu isso como músico?

E como administrador de empresa. E vendo como o mundo funciona, em casa, como é o orçamento familiar, a compra do supermercado, a administração da filharada, a provisão geral da necessidade da família. Qualquer mãe de família no Brasil sabe minimamente o que é o Ministério do Planejamento, o da Fazenda, o da Educação. Esses ministérios só existem por causa dessas pessoas, para essas pessoas, e têm de ser prosseguimento da vida delas. Esse orgulho acadêmico, às vezes exigido pelo próprio povo, não é assim. O povo ficaria melhor se dissesse aos gestores: "Sejam apenas uma continuação do que nós somos" (riso).

Essa é a marca que o senhor quer deixar no ministério?

É só o que vou deixar e é o que me move. É claro que devo dar atenção à gestão tradicional, em campos como o patrimônio histórico e as artes. Mas o grande deslocamento é no sentido da redimensão cultural, do novo paradigma da importância estratégica da cultura, dos desdobramentos para as novas linguagens e da questão dos mercados regulados. Há um novo mercado de bens e serviços que desabrocha. Esse tripé, indústrias criativas, propriedade intelectual e diversidade cultural, vai reger tudo. Está tudo junto, a cultura como cidadania, como economia e como fator de coesão social, de inclusão e deslocamento do risco social.

Falando em propriedade intelectual, sua obra é a herança de seus filhos, mas o senhor defende que o direito autoral não pode ser fechado...

Porque não é... O direito autoral não é a herança de meus filhos. Não quero essa acomodação, que eles vivam a lógica do funcionário público, mamar nas tetas, de que o emprego público é o sonho. Era na pré-República, no Império. Não quero que minha música seja o pé-de-meia deles. Minha visão do direito autoral é de Thomas Jefferson e outros líderes mundiais: o direito do autor deve atender à dimensão dele e à do público. Tem de contemplar ambos.

Mas isso não é conflitante?

Não, você pode migrar das garantias oferecidas ao individual às públicas com uma flexibilidade enorme. Há momentos, autores, obras e setores criativos que podem estar submetidos a todos os direitos reservados, e isso vai mudando até nenhum direito reservado, todos públicos.

Quais são os extremos?

O Brasil deu um exemplo eloqüente dos direitos que precisavam ser flexibilizados, na questão da liberação da propriedade intelectual dos fármacos, porque havia a questão econômica e social determinando. O caso da doença do HIV requeria um atendimento sobretudo nas áreas especiais como África e América do Sul. O exemplo oposto? Uma escultura de um determinado artista, que necessariamente vai estar nas mãos de alguém. Pode bem estar num museu e todos os resultados econômicos pertencerem a um autor, porque não afeta a obra. Diferentemente de uma canção, cuja exigência de compartilhamento é muito maior.

Com 40 anos de carreira bem-sucedida, o que o fez aceitar o ministério?

Porque estou vivo e a vida é cheia de caminhos a serem trilhados, compartilhados. O presidente Lula chegava com uma ressignificação do que é a nação. Pela primeira vez o dirigente máximo vinha de um segmento político emergente, com demandas e expectativas novas e a perspectiva de um embate profundo com o anacronismo das velhas formas de política de gestão da coisa nacional. Ia precisar de muito apoio e força. Acho que via em mim esse reforço simbólico, pensava que meu perfil público seria valioso no seu governo. Eu tinha de avaliar se esse valor iria além do reforço simbólico. Imaginei que coisas, como essas que tento fazer até agora, poderiam ser acopladas a essa dimensão simbólica já posta. Por isso eu vim.

E as expectativas estão se cumprindo?

Como na vida... Sempre com as novidades, surpresas e a retocagem diária da fotografia. Eu diria mais: renovação da fotografia, novos ângulos. A imagem é móvel, como no cinema, muda a cada dia, mas o roteiro do filme continua numa direção em que sangue, suor e lágrimas são ingredientes básicos. Se é assim em outros lugares, por que não será no ministério? O ministério também é sangue, suor e lágrimas (riso).

Na campanha, o senhor dizia para não cobrarem resultados do presidente Lula. Chegou a hora da cobrança?

Não, quem tem de cobrar é ele, dele mesmo, da sua administração, de nós, os ministros... A sociedade já cobra tudo, o tempo todo, não só do presidente. O pai cobra do filho, do patrão. O patrão cobra do investidor, do banco. O banco cobra dos agentes internacionais. O governo tem um papel de articulador de diálogos e interações. O governo investidor, dos primeiros tempos dos Estados-Nação, está desaparecendo. Em vez de prover o setor, tornou-se regulador e articulador dos interesses que convivem na sociedade, especialmente os do mercado e os das políticas públicas. Tem, pontualmente, funções estratégicas de fomento, investimento em algumas áreas, mas seu grande papel é de articulação e regulação. O governo estabelece as regras para os mercados regulados, que são a força máxima da sociedade moderna, via capitalismo. E eu nem gosto de usar este termo, capitalismo, que é obsoleto.

Qual é a palavra correta?

Seria mercados regulados, sistemas produtivos e distributivos que caracterizam o mercado tendo sua ação regulada. Como sua ação é, meramente ou em princípio, lucrativa, a regulagem é exatamente para essa dimensão.

Então a função do governo é administrar conflitos e vontades?

Exatamente. É investir um pouquinho, pontualmente, em áreas de desequilíbrio, não propriamente atingidas, para reequilibrar. E reger o conjunto da sociedade. Antigamente estava nas mãos das sociedades nacionais, mas hoje o internacionalismo e o multinacionalismo determinam isso. Daí a necessidade de pensar a governabilidade nacional, na cessão das autonomias, na migração das autonomias nacionais para uma governabilidade nacional. Essas coisas todas que a pós-modernidade passou a exigir.

Em meio a isso, como está a música popular brasileira?

Vamos discutir em termos de produto, força de expansão no mercado, que é como se distribuem os bens hoje em dia. A música brasileira tem vantagens e desvantagens comparativas. Tem vantagens no que diz respeito a sua constituição, a seu território, seu corpo, aquilo de que ela é feita, sua terra arável, produtiva, fértil. É uma terra muito boa: os sambas, os baiões, os choros, os xaxados, os axés, os maracatus, tudo isso tem uma força enorme. Essa mistura dá a chamada música popular, à qual me restrinjo para falar só do que é nosso grande produto. Nesse campo, nossa vantagem é muito forte. Ao mesmo tempo, a música brasileira é em língua portuguesa, o que é uma desvantagem muito grande. Se a terra musical é boa, a força da língua é pequena internacionalmente, em termos de expansão dos mercados, onde há uma hegemonia óbvia da língua inglesa. Essa é a escala mundial hoje: o inglês, depois o espanhol, o francês e, em quarto lugar, o português como língua de cultura propriamente musical. Mas essa desvantagem pode se deslocar a partir da criação engenhosa, astuciosa, de vantagens competitivas. Aí é caso de a música brasileira se virar, aumentar sua exposição e sua capacidade de audição internacional, e ficar competitiva.

Como músico, o que o senhor ouve hoje o satisfaz?

Aí é gosto, é uma questão estética que pode e deve estar associada à política. Temos hoje a melhor configuração política da música brasileira. É a música da cidade, fala para o mundo, retrata o homem brasileiro e esse brasileiro no mundo, com suas identidades múltiplas, com sua diversidade cultural. Me dá prazer.

O que o senhor tem ouvido ultimamente e do que o senhor gosta?

Ah, eu ouço tudo. Anteontem eu ouvia um disco do Dominguinhos e da Elba Ramalho, que ainda nem saiu. Um disco de forró eivado de elementos de aproximação com linguagens atuais, com rítmica clássica do forró migrando para uma outra, em que entram os elementos trazidos de outros batuques brasileiros e até mesmo das máquinas de ritmos, dos funks e dos hip hops. Para dar um exemplo próximo de casa, falo de minhas filhas Preta e Nara, com os Tresloucados, Lan Lan, o Davi e os meninos de Paulinho Boca de Cantor. Eles fazem um trabalho interessante porque processam as temáticas do gosto e da geração deles, discutindo formas de amar e de compartilhar, de gostar e desgostar de sua sociedade. Juntam isso e elementos do axé music, da Bahia, dos Novos Baianos, do Moraes Moreira, e elementos internacionais que transitam pela música cosmopolita de hoje. Porque eu tenho aquela coisa do Andy Warhol: ser pop é gostar (riso). Eu gosto de gostar de tudo. Alguém me perguntou outro dia: "E religião?". Eu disse: "Todas", porque há que respeitá-las, porque nascem de emanações importantes, de tentativas de abranger essa idéia do superior.

Então você não é ligado nas religiões afro?

Como religião, não. A minha religião é isso: respeito e gosto de todas, sou um defensor da promoção e do diálogo entre todas elas porque são fragmentos de um todo.

E na hora do aperto?

Na hora do aperto Deus está aqui, em mim (põe a mão no peito). Na hora do aperto sou eu comigo mesmo (riso). Na música é igual. A diversidade cultural nos obriga a respeitar todas as coisas, todas as linguagens, a defender o diálogo entre todas elas.

O senhor já fazia isso como músico?

Além de defender, promovi mesmo o diálogo entre todas as linguagens diferentes. Então, continuo defendendo isso.

Como ministro, o senhor não compôs mais. Isso o angustia?

Não, porque faço outras composições. Tenho outras maneiras de me expressar, de criar os textos com os quais converso com o mundo. Faço isso no ministério, cantando, ressignificando meu repertório, descobrindo nele significados, nuances ainda não manifestadas. Tenho umas 500 músicas com as quais posso brincar, readaptar, redimensionar no tempo e no espaço. Então, me contento com isso, porque tenho preservado o que eu mais gosto na música, que é a performance, cantar e tocar em público, até como ministro, muitas vezes. Há pouco mesmo, na viagem aos Estados Unidos, em Cuba, no Haiti, em São Francisco, Nova York, Boston, Washington, alguém sempre me trouxe um violão. Virou uma coisa óbvia.

No DVD Outros (doces) Bárbaros o senhor conta que ia fazer uma pós-graduação nos Estados Unidos quando sua carreira começou a deslanchar. Todos os governantes brasileiros dos últimos tempos passaram por lá. Ou seja, o senhor ia ser governo de qualquer maneira?

Quando eu cursava administração, havia opção de gestão pública ou privada, administração de empresas. Escolhi esta última. Passei um tempo na Gessy Lever, como estagiário, depois criei minha própria pequena empresa, da qual fiquei à frente durante muitos anos e que hoje está com Flora, minha mulher. Agora, acabei na gestão pública, que atualmente é híbrida. Tem de ser pública e privada, ser a intersecção do interesse do capital com o interesse público.

Como o senhor administra seu tempo?

Hoje, por exemplo, acordei às 6 horas da manhã para fazer minha ginástica, até as 7h30, para depois tomar meu banho, tomar meu café, etc., para estar, às 9 horas, no meu primeiro compromisso.

E vai até que horas?

Dez, 11 horas, meia-noite. Porque me habituei a acordar mais cedo e agora tenho sono mais cedo do que tinha antes.

Como fica o tempo para os filhos, a mulher, os amigos?

Nessa viagem, Flora foi até o Haiti e o Bem, meu filho, fez a viagem toda. Eu já tinha passado as pequenas férias de final de ano e o carnaval na Bahia. Quando cheguei de Washington, fizemos uma feijoada lá em casa, no Rio, como sempre acontece. Vieram o Caetano, o Jorge Mautner, a filharada, os amigos e as amigas deles, o Liminha, meu produtor. Dá para restaurar a dimensão afetiva, mas é preciso uma disciplina de monge.

O senhor sempre foi disciplinado?

Nem sempre. Fui ficando desde que a vida deixou claro que eu precisava de disciplinas relativas ao corpo, à mente, à alma, ao espírito. É muito conhecida a minha história de adesão a iogas, macrobióticas e meditações (riso). Aprendi a ler, por exemplo, coisa que não fazia muito quando era jovem. Ia muito ao cinema, festas e coisas assim. Hoje, uso quase todo o meu tempo de lazer para ler.

O que o senhor lê?

Tudo, várias coisas ao mesmo tempo. Agora estou lendo Multidão, de Toni Negri e Michael Hardt - a segunda parte do Império -, a autobiografia do Bob Dylan e também What's the Matter about Kansas? , de Thomas Frank. É um livro sobre o novo fundamentalismo americano, essa oposição entre a sociedade pré-moderna, representada por Estados como Kansas e Ohio, e a pós-moderna, do litoral, como Nova York e Califórnia. É uma questão dramática para eles, como constatei nessa viagem.

Maria Bethânia disse que aprendeu com Vinicius o valor da disciplina e que quem faz o dever de casa se diverte muito mais na hora de brincar...

Concordo com eles. Hoje, por exemplo, se não tivesse feito ginástica de manhã, não teria a condição mental e espiritual para sair para a vida. Aquela coisa do Paul Valery: a maior liberdade nasce do maior rigor. Tenho um mínimo de atenção ao equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco. Tem de ter espaço para as duas coisas. Como diz o filósofo François Jullien, no livro Um Sábio não Tem Idéia, tirando de Confúcio: o meio justo está na igual possibilidade dos extremos. Ainda que eu esteja no extremo apolíneo ou no extremo dionisíaco, estou com o olho no outro (riso) .