Título: O inferno da Cracolândia está quase vazio
Autor: Luiz Maklouf Carvalho
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2005, Metrópole, p. C1

Com a pílula cor-de-rosa na mão - uma pedra de crack, pela qual pagou R$ 10,00 -, Tatiana, de 28 anos, procura desesperadamente por um cachimbo. Precisa dele, já, para queimar a pedra, inalar a fumaça e ir para a delícia dos infernos por 10 minutos, tempo estimado da euforia provocada pela mistura de pasta bruta de cocaína e bicarbonato de sódio. Uma semana atrás, Tatiana não seria muito notada no gueto fétido da Cracolândia, há anos quartel de dependentes que enchem os cofres do tráfico. Agora, na quinta noite da Operação Limpa - uma razia da Prefeitura e do Estado nos quarteirões mais perigosos e degradados do centro -, é das poucas que se arriscam, com a coragem da fissura.

A poucos metros da Rua dos Gusmões, onde bate pernas atrás do cachimbo, está plantada uma base móvel da Polícia Militar. Oito carros ficam no vaivém. São 30 policiais rondando os 10 quarteirões da Cracolândia. Há funcionários da Prefeitura lavando as ruas, gente do serviço social, cavalarianos a trote.

Tatiana quer o cachimbo, não se importa em ser acompanhada e dá-se a contar variadas e contraditórias histórias de sua desgraça. São ex-maridos, amantes fugazes, filhos vivos, filho morto, casa boa, bairro bom e agora o cachimbo. "Esse é o meu inferno." Na esquina com a General Osório, prostitutas não o têm. Ela volta, faz abordagens a esmo, entra num hotel. Na Triunfo com a Vitória, o cachimbo minúsculo lhe cai nas mãos. Se algo a protege, além da perda do tino, é a péssima iluminação das ruas.

Protestantes, Gusmões, Vitória, Triunfo, General Osório, Aurora, Couto de Magalhães. Pode-se andar nelas, de madrugada, que já não há a presença predominante dos nóias. A operação sociopolicial os expulsou - as marcas mais expressivas são as paredes de cimento na entrada dos bares e hotéis. "Se não concretar, começam de novo", diz o subprefeito da Sé, Andréa Matarazzo, paulistano quatrocentão, ex-ministro e ex-embaixador na Itália, agora disposto a pôr um fim no furdunço. "Acabar com a Cracolândia é uma das minhas obsessões."

ZUMBIS

Que melhorou, não se discute. "Isso aqui estava mais para rua do inferno", afirma Lázaro Manoel dos Santos, de 33, gerente de uma sucata 24 horas na Rua dos Protestantes. No cenário que ele monta, os cachimbos de crack pareciam vaga-lumes, os nóias perambulavam como zumbis e as calçadas eram atulhadas de dejetos.

Perto da meia-noite, Lázaro se protegia no escritório da sucata. Agora, está na rua, com as calçadas quase vazias. Os que ainda dormem lá são alguns de seus abastecedores, catadores do lixo servível, com suas carroças. A Operação Limpa quebrou em 30% o movimento. "Depois a gente recupera. O importante é que continue assim."

Mais acima, na mesma Protestantes, por onde também circulou a pedra de Tatiana, funciona o bar do português naturalizado, mas ainda com sotaque, José Batista Soares, de 58. Dos que trabalham naquela região, é dos mais antigos. Chegou em 1974, prosperou com outros bares, formou os quatro filhos. O faturamento de hoje vem mais da compra de latinhas usadas, pesadas em uma balança à porta do estabelecimento. Vez em quando chega gente. O quilo custa R$ 2,80. "Até 80 era tranqüilo", lembra Batista. "Depois que aquela droga chegou, acabou."

É a pílula que Tatiana está prestes a queimar, ali perto. Os nóias deixaram muitas cenas degradantes na mente de Batista. Numa delas, eles estão jogados, sem sapatos, vendidos a trocado para comprar o crack. Venderiam a alma, se preço tivesse. "As autoridades já fizeram outras operações aqui, e voltou a ser o que era", diz Batista. "Vamos ver se essa não vai dar na mesma coisa."

A base móvel da PM está no cruzamento de três Ruas: Protestantes, Couto de Magalhães e Vitória. Na Triunfo, a um quarteirão dali, o movimento é maior. O sargento Aurélio comanda a batida em um bar. Dez freqüentadores, metade travestis, são colocados de costas, com as mãos na parece. A revista é demorada. Um travesti escandaloso, que bradara contra a presença do fotógrafo, volta a esganiçar. Outro provoca os policiais: "Dá um tiro em mim." Revista feita, nada encontrado, que ninguém é besta.

Se os nóias sumiram, travestis e prostitutas circulam. Muitos na Rua dos Andradas, mais distante da base móvel, alguns na Vitória, como Patrícia e Carla, mulheres, e Samanta, homem. Estão sentados num batente. Reclamam que o movimento caiu. "Mas a segurança melhorou", diz Carla.

Ela e Patrícia saem logo, com medo. Samanta fica, sem receio de se deixar fotografar. Diz chamar-se Marcos Souza, ter 30 anos, 15 de batalha, alguns deles em climas europeus. Dependente, vive tempos ruins. Pipou uma há quatro horas, obtida com um cliente. Quer outra, mas não deu sorte. "Com a polícia, ficou difícil." Sua coragem de aparecer é semelhante à de Júlia Rocha, nome de guerra. Também saudosa do clima europeu, exibe-se no cruzamento das duas ruas.

O trabalho de Júlia, contrasta, na noite calorenta, com o de Elisa Satin, descendência alemã, solteira e sozinha. Com 71 anos, ela aparece na confluência da base móvel arrastando, com as mãos enrugadas, mas fortes, três sacos de lixo servível. Lázaro pagará, por eles, R$ 10,80. Elisa tira R$ 300,00 mensais, o que ajuda a aposentadoria de R$ 260,00. "Nunca tive medo de drogados, mas agora está melhor", diz, reclamando de dores, da falta de amores e da solidão.

Já passa da meia-noite quando Tatiana, com o cachimbo, senta-se em um batente da Rua Triunfo. Quatro invejosos a observam. Um pede uma pipada, o que ela ignora. Não há preocupação com a polícia. A pílula cor de rosa é colocada no fornilho e a brasa de um cigarro esquenta a pedra. A chama de um isqueiro a leva para o céu. Será o fim da Cracolândia?