Título: O maior lobby da Terra
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2005, Editoriais, p. A3

E ncerrado na terça-feira o 5.º Fórum Social Mundial, há elementos decerto suficientes para uma avaliação desapaixonada desse evento que não cessou de se expandir desde que foi criado, exatamente porque abriu espaços cada vez maiores para a manifestação de uma desconcertante variedade de paixões. Trata-se das inumeráveis causas que tocam os corações e as mentes - nesta ordem - de seus participantes, desdobrando-se em um sem-fim de questões particulares que podem, ou não, ter parentesco com a razão primeira de ser do Fórum, a crítica radical do capitalismo e da globalização.

O que move o chamado "homem de Porto Alegre" - forma que se diria machista de designar o avesso do "homem de Davos", seu involuntário inspirador - são as vastas emoções da compaixão e da solidariedade, da ira e do clamor, da descoberta do inusitado e do convívio prazeroso entre iguais. As 155 mil pessoas - 2,5 vezes mais do que em 2000 - que este ano afluíram de toda parte às margens do Guaíba se banharam, como as que as antecederam, na sensação confortadora de compartilharem "a esperança do mundo", para lembrar, no contexto dos anos 1940, as palavras do romancista gaúcho Érico Veríssimo, no fecho de sua épica trilogia O tempo e o vento.

É apenas fácil apontar as fragilidades das peças de resistência do Fórum, a redundância da execração ritualística das mazelas do mundo e o simplismo que quase sempre permeia a inculpação do que seria a sua causa eterna e única - "a exploração do homem pelo homem" de que se falava muitas gerações atrás. Também é fácil, porque igualmente verdadeiro, ressaltar a carnavalização, entre o pitoresco, o patético e até mesmo o sublime dessa "feira de ideologias", como disse o presidente Lula, prevendo quem sabe as vaias que tempos depois ali iria ouvir. E é fácil ainda evidenciar a absoluta falta de objetividade no palavreado com que os participantes celebram a semeadura do outro mundo que lhes parece possível - que nada tem de parecido com a odara da canção de Caetano Veloso, ao contrário do que pretendem os habitantes "galácticos" da Aldeia da Paz.

Finalmente, nada mais fácil e apropriado do que desfazer de um Fórum que mira um novo futuro e trata como a encarnação dos seus ideais o que há de mais retrógrado na América Latina, o populismo demagógico e autoritário do coronel Hugo Chávez, que, se puder, ficará no governo da Venezuela tanto quanto Fidel Castro em Cuba (com a diferença de que este começou como revolucionário e, o outro, como golpista). Mesmo desvirtuado, porém, por esse anacrônico culto à personalidade do autocrata que seria a alternativa ao supremacismo de Bush - como se o mundo estivesse fadado a escolher apenas entre um e outro -, o Fórum é antes um acontecimento positivo do que o seu contrário.

Pode-se defini-lo, sem intenção pejorativa, como a maior concentração de lobistas do mundo: as 352 propostas debatidas no evento recém-terminado embutem demandas dos mais diversos gêneros, graus de seriedade e chances de êxito. São pressões em princípio legítimas sobre os governantes da Terra por mudanças tópicas ou abrangentes. A coletânea traça um panorama dos problemas que, à parte qualquer outra consideração, talvez devam merecer as atenções daqueles com quem os homens e mulheres de Porto Alegre, numa atitude radical e reveladora de insegurança, se recusam a dialogar, como propõe o presidente Lula: os freqüentadores de Davos.

Observadores e até participantes do Fórum comentam que ele só faz criticar. Pensando bem, no entanto, a crítica, embora desacompanhada de projetos viáveis de mudança, tem um efeito benéfico. Davos mudou, potencialmente para melhor, desde que Porto Alegre entrou no radar da mídia mundial. Além disso, o Fórum Social fornece ampla matéria-prima para reflexões sobre o que o sociólogo José de Souza Martins, em artigo no caderno Aliás do Estado de domingo, chamou "a reengenharia da esperança". Ele observa com argúcia que "a festa de Porto Alegre expressa, acima de tudo, o esvaziamento e o fim das formas históricas de confronto social que conhecíamos", nelas incluído o Maio de 1968 na França.

Seja qual for, portanto, o resultado da soma algébrica de seus defeitos e qualidades, o Fórum tem uma inequívoca afinidade com o atomizado mundo atual, em que as múltiplas reivindicações e os múltiplos movimentos que as promovem de múltiplas maneiras parecem dispensar, escreve Martins, "a constituição de um agente de transformação social dotado de um projeto político historicamente possível" - o que eram para o dogma marxista a classe operária e a idéia de revolução que deu no que deu.