Título: O Fisco e a Constituição
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2005, Editoriais, p. A3

E mbora muitos ministros do atual governo não deixem passar um único dia sem enfatizar o caráter "participacionista e democrático" do PT, a Receita Federal tem demonstrado justamente o oposto. Recorrendo aos mais variados instrumentos jurídicos, de portarias a medidas provisórias, o órgão espertamente se vale de cada nova tungada no bolso dos contribuintes para tentar esvaziar seus direitos e enfraquecer suas defesas legais.

A última ofensiva ocorreu no penúltimo dia de 2004, quando, a pretexto de corrigir a Tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas, depois de uma festiva encenação com as centrais sindicais, o governo baixou a MP 232. Esse texto legal não apenas elevou em 30% a base de cálculo da carga tributária dos prestadores de serviço, como, em diferentes artigos, parágrafos e incisos, também investiu contra um dos pilares do Estado de Direito.

Trata-se do amplo direito de defesa concedido pela Constituição de 88 a todo e qualquer litigante, seja na esfera administrativa, seja no plano judicial. A importância desse direito é tão grande para o regime democrático que a Carta o classificou como "cláusula pétrea", motivo pelo qual não poderia ser objeto de emenda constitucional. Mesmo assim, afrontando acintosamente o legislador constitucional, a MP 232 restringiu drasticamente o acesso das pessoas físicas e jurídicas ao Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, ao estabelecer que litígios fiscais inferiores a R$ 50 mil, pendências que envolvam restituição, ressarcimento, compensação, isenção e imunidade de tributos e processos relacionados ao Simples, não mais poderão ser objeto de recurso administrativo.

Além de ser flagrantemente inconstitucional, essa medida é perversa com os pequenos contribuintes, pois, ao lhes negar o direito de defender seus interesses pela via mais confiável e barata - a administrativa -, ela os obriga a gastar com advogados e custas judiciais. Já as empresas de médio e grande portes ficaram sem a possibilidade de discutir, pela mesma via, casos de devolução e compensação de impostos pagos a mais no passado ou cobrados de modo irregular. Para se ter uma idéia dessa violência, a Natura, uma empresa de cosméticos, graças a um dos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, compensou, em 2004, R$ 12 milhões relativos a dois tributos recolhidos entre 1988 e 1995, ambos considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Outras grandes empresas, como a Petroquímica União e a Companhia Petroquímica do Sul, também discutem a mesma reivindicação, no valor de R$ 11,3 milhões e R$ 47,7 milhões, respectivamente.

O número de direitos já surrupiados pela Receita, pela sistemática afronta à Constituição, é inquietante. Entre as maiores violências, destacam-se a exigência de depósito como condição para se impetrar recursos à segunda instância administrativa; execuções fiscais de débitos já pagos, sem que a prova do pagamento seja examinada pelos auditores fiscais e procuradores da Fazenda Nacional; e a abertura de ações penais antes do encerramento dos processos administrativos.

Muitas dessas investidas contra os direitos fundamentais, especialmente as restrições ao direito de defesa no plano administrativo, decorrem de uma estratégia maquiavélica concebida para propiciar caixa ao governo. Isto porque, enquanto nos Conselhos de Contribuintes os recursos têm efeito suspensivo, motivo pelo qual a Receita não pode avançar no bolso das pessoas físicas e jurídicas até que os feitos sejam julgados, o mesmo não ocorre na Justiça. Nesta esfera, há casos em que os depósitos judiciais podem ser transferidos para o Erário antes do julgamento definitivo da ação. Além disso, os valores em discussão também podem ser inscritos pelo Fisco na dívida ativa da União, o que obriga os recorrentes a depositar o valor da causa para poderem continuar operando com bancos e dispor de crédito, enquanto ela não for decidida

Diante do autoritarismo da Receita, desmoralizando com suas sucessivas investidas inconstitucionais o pretenso caráter "participacionista e democrático" do governo do PT, a única esperança para se preservar o Estado de Direito reside no STF. Cabe à corte restabelecer o direito de defesa esvaziado pela MP 232 e coibir a ditadura das autoridades fiscais, garantindo com isso a Constituição e a democracia tão arduamente conquistada.