Título: Em 2005, o velho Projeto Rondon
Autor: Ruth Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Espaço Aberto, p. A2

Ao fazer renascer o Projeto Rondon neste início de ano, o governo do PT surpreendeu negativamente ao evitar qualquer avaliação crítica desta que foi uma das marcas registradas da ditadura militar. Simplesmente trouxe de volta um modelo velho, que desconsidera iniciativas de desenvolvimento sustentado, abre espaço para o clientelismo e não estimula mecanismos de participação democrática. Uma das principais características do moderno gestor público é a de avaliar continuamente resultados, de forma a manter ou, se necessário, redefinir seus planos de ação. Certamente não é necessário reinventar a roda todos os dias, mas, em função dos objetivos a serem alcançados, é fundamental considerar iniciativas semelhantes e incorporar aportes de experiências inovadoras. O governo federal preferiu ignorar a experiência acumulada no Brasil em termos de envolvimento de universitários no apoio às populações mais carentes. Em 1995, o Conselho da Comunidade Solidária acabava de ser criado e já tinha como prioridade oferecer oportunidades aos jovens. O Projeto Rondon, sem dúvida, foi uma iniciativa que mostrou o quanto era atrativo para os universitários participar da vida de comunidades pobres e isoladas. Depoimentos dos rondonistas são ainda hoje comoventes e serviram de base para aqueles que se dispuseram a repensar essa experiência e, principalmente, adequá-la ao contexto democrático dos anos 90. Filho do regime militar, o Projeto Rondon trazia marcas de sua origem. Foi desenvolvido sem o apoio das universidades, centralizado em Brasília, dispondo de verbas próprias e dirigido por militares. Era fruto de uma estratégia para afastar os estudantes das manifestações de oposição e, por isso mesmo, não valorizou a participação das suas instituições (os candidatos eram selecionados individualmente) e, menos ainda, das organizações estudantis, na época atores importantes na oposição à ditadura militar. Portanto, repensar esta experiência significava libertá-la do controle do governo e garantir autonomia aos participantes. O Conselho da Comunidade Solidária, desde sua criação, procurou estimular o debate sobre parcerias entre o governo e a sociedade civil como forma de aumentar a participação desta, assim como a eficiência dos projetos sociais. Dentro deste novo conceito, repensar o Projeto Rondon foi uma oportunidade para construir uma prática nova e muito mais democrática, contando com o apoio de empresas, de universidades, de agências governamentais ligadas à educação (como Capes e CNPq) e das Forças Armadas. Trabalhar em parceria supõe que as decisões sejam compartilhadas e a execução, descentralizada. Os diferentes atores assumem responsabilidades e fazem parte de uma cadeia de ações na qual cada um tem uma função que exerce com autonomia. O programa Universidade Solidária, que resultou destes princípios, era e é diferente do Projeto Rondon porque está adaptado aos novos tempos de diálogo e solidariedade em que vivemos desde a vitória das "diretas já". Tempos de parceria e descentralização, participação e responsabilidade compartilhada. Iniciada em 1995, a Universidade Solidária (UniSol) já levou estudantes para cerca de mil localidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Trabalha com uma rede de universidades públicas, comunitárias e privadas, e 200 dessas instituições de ensino superior já implementaram centenas de projetos sustentáveis elaborados por professores e alunos. Seu desempenho pode ser conhecido pelo portal www.unisol.org.br, animado pela presença das universidades e dos universitários, que repassam suas experiências. Com um custo mínimo, as equipes UniSol se deslocam e experimentam o enriquecimento de visão tão valorizado por alunos e professores, ao mesmo tempo que oferecem informação e estimulam a participação da comunidade na solução de seus problemas, aliando pesquisa e extensão à experiência. Ao longo dos seus dez anos, mais de 20 mil universitários passaram por esse trabalho enriquecedor, que ajuda a fortalecer a cidadania. As atividades, sem cunho assistencialista, buscam indicar caminhos para que a comunidade se mobilize em defesa de seus interesses e também apoiar as lideranças locais e suas organizações. Esta orientação garante o fortalecimento da comunidade local por meio da ação do voluntariado civil das universidades, da responsabilidade das empresas e do apoio de agências públicas, especialmente as prefeituras. Neste modelo de atuação das universidades não há ideologias dominantes nem receitas para a ação. Há, sim, a preocupação com o desenvolvimento local sustentável. Também não é objetivo das equipes prestar diretamente serviços quando é deficiente o atendimento público. Seu objetivo é apoiar agentes de saúde, professores, líderes, oferecendo informações que facilitem seu trabalho e abram canais para o encaminhamento de suas demandas. O que falta a estas comunidades é mais informação e conexões, e isso as universidades podem levar e deixar como fruto de seu trabalho. Este processo é um passo importante na direção do desenvolvimento social. A julgar pelo modelo da recriação do Projeto Rondon, no entanto, estamos diante de uma visão diferente do que é desenvolvimento. No pensamento e no trabalho da Comunidade Solidária e da UniSol, não é apenas ofertar serviços. É, sobretudo, fortalecer a capacidade das pessoas e valorizar os recursos da comunidade.