Título: 'Era como se a gente estivesse se prostituindo', diz ex-censora
Autor: Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Nacional, p. A4

Odette Martins Lanziotti foi técnica de censura durante quase toda a década de 70. Lia dezenas de letras de músicas todos os dias e decidia pela aprovação ou não das composições. Criações de Milton Nascimento e Gilberto Gil, entre muitos outros, passaram por sua avaliação. Na sexta-feira, ela ouviu, por telefone, trechos de pareceres que assinou, mas não se lembrou de nenhum. "Não tem aí uma música chamada Dois homens? Sou louca para encontrar essa música. Era uma letra muito inteligente, bem elaborada, mas eu sentia algo que não podia aprovar. Li de cima para baixo, de baixo para cima e demorei muito a descobrir o que era. Não me lembro dos versos, mas fazia apologia a dois homens juntos. Nunca mais vi esta música", conta Odette, de 85 anos, aposentada da Polícia Federal desde 1980.

"Muitas vezes, a gente reprovava a música, mas se sentia como se estivesse se prostituindo, porque não concordava com aquilo. Mas os censores tinham de ter o máximo de cuidado. Recebíamos muitas orientações que deviam ser seguidas. Quem aprovasse uma música que depois fosse reprovada em Brasília tinha de responder a processo interno."

Certa vez, aprovou uma letra que falava em "tempo de murici". Lembrou-se do dito popular "em tempo de murici, cada um cuida de si" e não viu problema na composição. "Fui criada ouvindo o ditado, nem sabia que tinha um general Muricy (Antônio Carlos Muricy, um dos líderes do golpe militar de 1964). Mas respondi a processo e me defendi. Tive colegas que foram transferidos de cidade porque aprovaram letras que não deveriam ser liberadas."

SACO DE PANCADA

Os técnicos de censura eram a primeira instância do Serviço de Censura e Diversões Públicas. A PF em Brasília confirmava ou não as recomendações e analisava recursos encaminhados pelos autores.

"Os censores eram saco de pancada. Recebiam ordens e tinham de executá-las. Recebíamos orientações dos chefes. Algumas vezes, a recomendação era prestar mais atenção na política, no duplo sentido. Outras, chamavam atenção para a apologia das drogas, para a preservação dos bons costumes. As autoridades tinham supremo cuidado, às vezes até em excesso", ressalta a ex-censora.

Odette afirma que nunca se envolveu com a política, embora às vezes considerasse a censura rigorosa demais. "Sempre fui muito apolítica, cumpria minhas obrigações sem entrar em detalhes", diz ela, que entrou por concurso na Polícia Federal em 1956. Fez vários trabalhos burocráticos até ser chamada para o departamento de censura, no início dos anos 70.

"A censura primeiro ficou concentrada em Brasília, mas depois eles sentiram necessidade de criar uma turma no Rio. O trabalho era árduo, mas tudo tem um lado positivo. Eu não me envolvia na política e não me envolvo até hoje. Mas o trabalho abriu meus horizontes, porque eu tinha que pesquisar, estudar. Às vezes, nós fazíamos coisas contra nossa vontade, mas tínhamos que obedecer ordens."