Título: O que o País não pôde ver nem ouvir, em 70 mil documentos
Autor: Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Nacional, p. A4

Até o fim deste ano, um extenso e rico acervo do Arquivo Nacional, no Rio, será aberto ao público e mostrará com mais detalhes a ação da censura prévia nas produções culturais durante o regime militar. As letras de músicas submetidas à análise dos censores do Rio nos anos 70 e 80 estão sendo catalogadas pelos técnicos do arquivo. Os pedidos de autores, produtores e gravadoras à Divisão de Censura e Diversões Públicas da Polícia Federal e os pareceres que indicavam liberação, aprovação mediante modificações das letras ou veto às músicas poderão ser consultados por pesquisadores. São pelo menos 70 mil documentos.

A preparação do material para ser aberto ao público está sob o comando do chefe da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, Mauro Lerner Markowski. Ele conta que a produção cultural submetida à avaliação da censura durante mais de 20 anos anos foi encontrada por acaso na sede da Polícia Federal, no centro do Rio, em 1993, quando técnicos do Arquivo buscavam documentos sobre estrangeiros no Brasil.

Surpreendidos com uma enorme quantidade de papéis num galpão, os funcionários descobriram o acervo da censura prévia do Rio e, com a concordância da PF, providenciaram a transferência. A primeira parte catalogada, já à disposição do público, foi a de peças teatrais. Agora, é a vez da música.

A LÁPIS

"Letra de protesto, que vai de encontro com as normas adotadas atualmente. Salvo melhor juízo, interdito", diz o parecer de um censor, não identificado, emitido em 5 de junho de 1970, depois de analisar a letra de A Luta contra as Latas, de Gilberto Gil, hoje ministro da Cultura. O mesmo papel tem a indicação "aprovada", a lápis, mas não há data nem assinatura.

Embora o registro da censura seja de 1970, a música tinha sido gravada no disco Gilberto Gil, de 1968, com o título A Luta contra a Lata ou A Falência do Café. Diz a pouco conhecida canção do compositor baiano: "Chaminés plantadas nos quintais do mundo/ as latas tomam conta dos balcões/ navios de café calafetados/ já não passeiam portos por aí/ rasgados velhos sacos de aniagem/ a grã-finagem limpa seus brasões/ protege com seus sacos de aniagem / velha linhagem de quatrocentões/ os sacos de aniagem já não dão/ a queima das fazendas também não/ as latas tomam conta do balcão/ vivemos dias de rebelião."

Em um papel amarelado e rasgado nas pontas, está outra composição de Gil, Cálice, primeira parceria com Chico Buarque. Recebeu cinco avisos de "vetado", quatro em carimbos e um escrito à mão. Não há nenhuma explicação formal para o veto, como acontecia em outras composições proibidas. É evidente, no entanto, que o censor captou a intenção de confundir o substantivo cálice com o verbo calar-se, que denunciava os rigores da ditadura. Ao lado de "cálice", o funcionário anotou três vezes "cale-se". Vetou, rubricou e datou: 10 de maio de 1973.

Também composta por Gil, a música João Sabino foi vetada em setembro de 1974, mas liberada dois meses depois. A censura implicou com o primeiro verso - "tava comendo banana pro santo" - e, no parecer de reprovação, a censora Odette Martins Lanziotti justificou o fato de fazer "menção irreverente à suprema figura religiosa". Em novembro, dois censores, Augusto da Costa e Lycurgo Leite Neto, disseram ter verificado que a letra não era "ofensiva a qualquer figura religiosa", mas recomendavam a retirada da frase: "A fim de que não haja interpretação malévola."

"Tava comendo banana pro santo/ pra quem?/ pro santo/ pro santo espírito senhor/ pai do filho e do Espírito Santo/ filho do Espírito Santo/ de uma localidade de lá/ numa localidade de lá/ uma abertura em si/ uma embocadura de dó/ sustenindo uma passagem pra ré", dizia o início da música. Ainda em 1974, Gil gravou-a em um disco ao vivo, incluindo o primeiro verso.

SEM JUSTIFICATIVA

"Muitas vezes, a letra da música traz apenas palavras sublinhadas e o carimbo de veto, sem justificativa", afirma Mauro Lerner. Foi o que aconteceu com Partido Alto, de Chico Buarque. Um asterisco na palavra "brasileiro" e uma interrogação no termo "titica" indicam o que deveria ser alterado.

Chico mudou. Ficou assim: "Deus é um cara gozador, adora brincadeira/ pois pra me jogar no mundo tinha o mundo inteiro/ mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ na barriga da miséria eu nasci batuqueiro (substituindo brasileiro)." E na outra estrofe: "Jesus Cristo inda me paga/ um dia inda me explica/ como é que pus no mundo esta pobre coisica (no lugar de pouca titica)/ vou correr o mundo afora, dar uma canjica/ que é pra ver se alguém me embala, ao ronco da cuíca."

As alterações agradaram. A letra foi aprovada pela Polícia Federal, em Brasília, em 10 de abril de 1972.