Título: Rondon reencontra, nos confins da Amazônia, a mesma velha pobreza
Autor: José Maria Mayri
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Nacional, p. A8

A pequena Marilene Curicuam, de 8 anos, abraçou a estudante Ana Luiza de Castro, aluna de arquitetura do Centro Universitário Luterano, de Manaus, e fez uma declaração de amor, falando no plural, traduzindo o carinho da meninada de Guadalupe, o bairro mais pobre de Tabatinga. "Nós gostamos de você", disse a indiazinha, cujos pais, como a maioria das 40 famílias dessa vila ribeirinha de precárias casas de palafitas, emigraram do Peru, ali do outro lado do Rio Solimões, a cinco minutos de canoa, para tentar melhor sorte no Brasil. São "desplacentados", como dizia o ex-presidente Alberto Fujimori, quando se referia aos excluídos de seu país.

Ana Luiza e seus colegas - uma equipe multidisciplinar de quatro universidades - ficaram emocionados com a despedida das crianças. Estavam de partida de Tabatinga, depois de 15 dias de trabalho na primeira fase do Projeto Rondon, lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Amazônia. Passaram uma semana na cidade.

Na manhã seguinte, quinta-feira, os 75 jovens e seus professores embarcariam num Hércules da Força Aérea Brasileira, de volta às suas cidades, levando na bagagem dados do diagnóstico que definirá as linhas da execução do projeto, nas férias de julho. Somando-se os participantes de outras equipes, são 200 alunos de 40 universidades, distribuídos por 13 localidades.

Sempre acompanhados por um sargento do Exército, os estudantes visitaram as comunidades mais inacessíveis da região para analisar condições de vida e registrar necessidades. Viajaram de Kombi nas áreas urbanas, cruzaram rios em voadeiras (lanchas a motor), atravessaram igarapés em pinguelas e atravessaram quilômetros de selvas em duras caminhadas.

Em sua segunda visita a Guadalupe, os alunos de Arquitetura e Urbanismo e de Engenharia Ambiental de Manaus ensinaram os moradores coletar lixo na área poluída da vila, onde o esgoto corre a céu aberto para as águas do Solimões. "Onde é o lugar do lixo, basura?" - perguntou um dos estudantes. "No buraco" - responderam três crianças em coro, repetindo a lição aprendida na primeira visita-aula do Projeto Rondon. Como ninguém tem lixeira em casa, os estudantes ensinaram os moradores a aproveitar sacos plásticos para juntar material reciclável.

Cristiano Martins Vidor, aluno de Odontologia da Universidade de Santa Maria (RS), sorteou um voluntário para mostrar como se cuida dos dentes. Distribuiu escovas e pastas para, em seguida, continuar a demonstração numa das palafitas. "Tem água corrente, mas nada confiável", lamentou o gaúcho, uma hora depois.

Na sede do Programa de Saúde da Família, a equipe da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto se surpreendeu com a incidência de malária nas duas comunidades de Umariaçu, na periferia de Tabatinga, onde há 3 mil ticunas: mais de 600 casos recentes em 900 amostras de sangue analisadas. "Os ticunas vivem em área urbana, mas saem para pescar e caçar na mata, onde são picados pelos mosquitos", informou o agente de endemias Aluízio Silva de Almeida. Sete dias de tratamento curam a malária, mas os índios não saram, porque deixam de tomar o remédio depois de três ou quatro doses, quando a febre passa.

No Projeto Sentinela, ligado ao Fome Zero, a coordenadora Suely Santos de Moraes, alertou para o alto índice de prostituição infantil e de gravidez precoce em toda essa região da Tríplice Fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). "Meninas engravidam aos 13 anos", informou a coordenadora, cujos arquivos registram 132 processos de mães solteiras. As adolescentes recebem assistência na Casa da Gestante, da Pastoral da Criança.

TRABALHO NA AMAZÔNIA

"Se dependesse da gente, nós quatro viríamos trabalhar na Amazônia", comentou Fernanda Fernandes Zapata, da turma de Ribeirão Preto, falando em nome dela e dos colegas Denise Amorim Paz, André Salani Mota e José Vítor Zanarde. Os estudantes atuaram em Tabatinga sob a coordenação do professor Anderson Soares da Silva, médico de família e docente do Departamento de Medicina Social.

Para o veterano Ubiratan Tupinambá da Costa, professor de Odontologia da Universidade de Santa Maria, que participou do primeiro Projeto Rondon entre 1977 e 1988, o interesse de se mudar para regiões desprovidas de profissionais é uma coisa louvável, mas raramente dá certo. "As prefeituras acenam com bons salários, de até R$ 5 mil, mas acabam pagando quatro vezes menos", informou.

"Na minha área, seria mais fácil, porque engenheiro agrônomo tem de ir para o interior", disse Sandra Cristina Lins dos Santos, recém-formada pela Universidade Federal do Paraná. "Eu até pensaria na Amazônia, mas já tenho contrato de três anos para trabalhar num programa de extensão rural do Incra/MST", acrescentou.

CONTRABANDO

Sandra e seus colegas fizeram levantamento no porto fluvial de Tabatinga para analisar as condições de pesca no Alto Solimões. Ficaram escandalizados: toneladas de peixes nobres da região - pirarucu, tucunaré e tambaqui - são contrabandeadas para a Colômbia, via Letícia, cidade ligada a Tabatinga por fronteira seca.

"Colombianos agenciam pescadores brasileiros, fornecendo barcos, tarrafas, anzóis e gelo, com o compromisso de entregarem todo o peixe a eles", disse o presidente da Associação de Pescadores de Tabatinga, Fausto Curica de Souzas. Ele reivindica do governo a compra de um barco e a montagem de uma fábrica de gelo para seus 1.133 associados se livrarem da dependência dos colombianos.