Título: Por dentro do Tumucumaque
Autor: HERTON ESCOBAR
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Vida &, p. A14

MACAPÁ - Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque; 12 de janeiro de 2005; trilha 1; 2.050 metros. O pesquisador Luiz Antonio Coltro Jr. chega a uma pequena clareira perdida na imensidão da selva amazônica. Com o toque de um botão, ele aciona o gravador e aponta o microfone para um pequeno pássaro preto que canta nas proximidades. Após alguns segundos de gravação, rebobina a fita e aciona o playback no alto-falante para atrair a atenção da ave. Imaginando estar na presença de um invasor, o pássaro sai do esconderijo e pousa em um galho mais baixo, a poucos metros do pesquisador. Coltro troca o microfone pelo lápis e anota em um caderninho: Hypocnemoides melanopogon - vulgo solta-asa-do-norte. A partir desse momento, a espécie pertence oficialmente ao parque.

O trabalho faz parte de uma audaciosa expedição científica montada para documentar a biodiversidade de uma das regiões mais selvagens e inexploradas da Amazônia brasileira, no extremo oeste do Amapá. Coltro, um jovem ornitólogo vestido em roupas camufladas, pertence a uma equipe de sete pesquisadores embrenhados na mata durante 15 dias, documentando todas as plantas e animais que encontram pela frente.

O local do acampamento é à beira do Rio Mapaoni, num dos pontos mais remotos do Tumucumaque, e a poucos quilômetros da tríplice fronteira com a Guiana Francesa e o Suriname (veja mapa na página oposta). "Estamos indo a lugares onde nenhum ser humano jamais pisou - pelo menos o civilizado", diz o pesquisador Antônio Carlos da Silva Farias, diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa).

A única maneira de chegar até o ponto de pesquisa é pelo ar, pois os rios da região são pedregosos e de difícil navegação, até mesmo para barcos pequenos. Para colocar toda a equipe em campo, no dia 8, foram necessárias várias viagens de avião bimotor e helicóptero, incluindo um trecho final à bordo de um Black Hawk do Exército, o helicóptero de elite usado para patrulhamento de fronteira, com capacidade para 12 passageiros e 5 toneladas de carga.

Voando rente às árvores, em estilo de combate, ele pousa em uma clareira aberta dias antes por um grupo de mateiros armados com facões. A vegetação é das menos amigáveis: um bambuzal espesso, conhecido como taboca, com espinhos que se agarram à roupa e perfuram a sola do tênis. Dali são 150 metros de trilha até o ponto de acampamento, onde os mateiros preparam os barracões de lona que servirão de alojamento, cozinha e laboratório durante a expedição. Ao redor, a floresta virgem se estende a perder de vista em todas as direções. O núcleo de apoio mais próximo está a 150 quilômetros de distância, na aldeia indígena de Tiriyós, no Pará, de onde o helicóptero partiu.

O Estado acompanhou a expedição durante os sete primeiros dias, entre 8 e 15 deste mês. Ao todo, a equipe era composta de 31 pessoas, incluindo pesquisadores, mateiros, auxiliares de campo, soldados do 34.º Batalhão de Infantaria de Selva e analistas ambientais do Ibama, responsáveis pelo gerenciamento do Tumucumaque.

O objetivo da expedição era fazer o reconhecimento do parque, criado há dois anos, e produzir um primeiro inventário das espécies que ocorrem dentro dele. Todas as informações serão usadas na elaboração do plano de manejo da unidade - o documento que vai dizer tudo que pode ou não ser feito dentro do parque, onde, quando e como. "Para fazer um plano de manejo você precisa de uma série de informações; e um dado básico é sobre o que existe ali, qual a biodiversidade do local. Porque você não pode proteger nada que você não conhece", explica Enrico Bernard, chefe científico da expedição pela organização não-governamental Conservação Internacional.

A pesquisa exige muita disposição para encarar a rotina de acampamento e as longas caminhadas diárias pela selva bruta. No ambiente quente e úmido da floresta, um copo de água mineral ou de qualquer outra bebida gelada torna-se rapidamente um sonho de consumo inatingível. Toda a água usada na expedição é retirada do rio e tratada com hipoclorito de sódio. A alimentação limita-se a arroz, feijão, charque, calabresa e macarrão. Os banhos têm de ser tomados na parte rasa do rio, com a ajuda de canecas, para evitar encontros com os jacarés - um dos quais gostava de dormir bem próximo do acampamento todas as noites - e com os trairões, um peixe grande, agressivo e de dentes afiados, com tendência a morder banhistas desavisados. Além disso, é preciso cuidado com o candiru, um peixinho comprido e oportunista, que é atraído pela urina e costuma penetrar nos orifícios mais incômodos do corpo.

O risco de contrair alguma doença tropical também é grande e, de certa forma, inevitável. Coltro, por exemplo, ainda leva no corpo a ferida de uma leishmaniose contraída em uma das expedições anteriores. Dessa vez, por sorte, há poucos mosquitos no acampamento. O maior incômodo fica por conta dos carrapatos, que aparecem por todo o corpo.

PESQUISA

O registro das espécies é feito principalmente por meio de capturas, mas também por identificação visual e sonora, no caso dos animais muito grandes ou difíceis de se capturar. Nesse quesito, os mais fáceis de se identificar são os macacos guariba, que berram continuamente no topo das árvores como uma torcida de futebol, e os macacos-aranha, que costumam jogar galhos e fezes naqueles que invadem seu território.

A maior parte dos habitantes da floresta, entretanto, não se deixa ser vista com facilidade. A camuflagem é uma regra básica de sobrevivência, e é preciso olhos e ouvidos aguçados para encontrar os bichos em meio ao infinito de árvores e folhas.

Os pesquisadores se movimentam na mata fechada por meio de um trilha principal, de sete quilômetros, aberta durante os primeiros dias da expedição. A partir desse eixo também são abertas várias outras picadas laterais, usadas principalmente para a colocação de armadilhas.

O objetivo é coletar e registrar o maior número possível de espécies. Os animais capturados são levados de volta ao acampamento, onde são fotografados, pesados, medidos e fichados. Ao final, são mortos - sempre da forma mais rápida e indolor possível - e imediatamente acondicionados de forma que seus corpos e tecidos sejam preservados. O destino final são as coleções biológicas do Iepa, em Macapá, onde ficarão à disposição da comunidade científica para estudos mais detalhados. Cada pesquisador tem autorização para coletar no máximo seis exemplares de cada espécie. "Todo o material é tombado no Iepa e fica no Amapá para ser pesquisado", afirma Bernard.

Coltro é sempre o primeiro a deixar o acampamento, por volta das 5 da madrugada, com a floresta ainda escura. O trabalho começa com um rápido café da manhã e uma caminhada à luz de lanternas até o ponto na trilha onde foram deixadas as redes de captura. As armadilhas, dificílimas de serem enxergadas, precisam ser abertas às 6 horas, antes do raiar do sol, quando começa o horário do rush do tráfego aéreo na selva. "É a hora em que as os pássaros acordam para forragear. Depois, nas horas mais quentes do dia, eles se empoleiram para fazer manutenção, limpar penas, retirar parasitas e coisas do tipo", explica Coltro. Cada rede forma um paredão invisível de 2,5 metros de altura por 12 de comprimento que arremata as aves durante o vôo.

Enquanto os ajudantes de campo fazem a coleta nas redes, a cada uma hora, o pesquisador aproveita para caminhar na mata, fazer observações com binóculos e gravar cantos de aves para o banco de dados. "O que a gente faz é o básico da ecologia: registramos o canto e coletamos indivíduos. Depois, novos estudos poderão ser feitos a partir disso", explica.

O restante da equipe científica inclui especialistas em répteis e anfíbios, mamíferos, morcegos, peixes, crustáceos e plantas superiores. As rotinas de coleta são semelhantes, com horários e métodos adaptados para cada grupo.

A possibilidade de encontrar espécies novas é grande, dado o isolamento da área e a quase total escassez de estudos na região. Para que um bicho possa ser decretado inédito, entretanto, é necessária uma série de checagens na literatura e comparações com outros exemplares do mesmo gênero - o que pode consumir meses ou até anos de pesquisa. Por isso a importância de se coletar os animais e preservá-los nas coleções biológicas dos museus. Da mesma forma que um historiador busca informações em uma biblioteca, os biólogos utilizam essas coleções para estudar a biodiversidade - sem que todos precisem pegar um helicóptero e passar duas semanas na mata para isso. Sacrificar alguns exemplares, nesse caso, é uma forma de produzir o conhecimento científico básico necessário para conhecer a espécie e, se necessário, protegê-la.

A expedição chegou ao fim no dia 23, com um bando de pesquisadores cansados e mais de 400 espécies registradas. Algumas possivelmente novas para a ciência, outras inéditas para o Estado do Amapá. Agora começa o trabalho mais difícil de pesquisa, nas bancadas do Iepa. "O que a gente está fazendo é o início, não o fim", afirma Bernard. "As expedições são só a porta de entrada."