Título: Um pacifista entre os armamentistas
Autor: HERTON ESCOBAR
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Vida &, p. A17

Quando Walter Kohn elaborou a teoria da densidade funcional, 40 anos atrás, não tinha nenhuma intenção de contribuir para o desenvolvimento de armas nucleares. Da mesma forma que revolucionou a física de sólidos e permitiu o desenvolvimento de praticamente toda a eletrônica moderna, entretanto, seu conhecimento acabou sendo usado também para pesquisas armamentistas. Hoje, aos 81 anos, o físico mais citado na literatura científica e sobrevivente do Holocausto vive o dilema de ser um pacifista trabalhando na instituição líder em pesquisas com armas nucleares: a Universidade da Califórnia. Vencedor do Prêmio Nobel em 1989, Kohn mostrou que para estudar o que ocorre dentro de um sólido basta calcular a densidade dos elétrons presentes naquele corpo - simplificando radicalmente a matemática necessária para esse tipo de pesquisa. Em visita ao Brasil, ele falou ao Estado sobre seu trabalho.

Em sua palestra no Rio (na semana passada), o senhor falou muito sobre a importância do uso de energias renováveis, como a solar. É nisso que está trabalhando agora?

Estou trabalhando há cerca de um ano em um projeto público educativo sobre isso, que inclui um filme sobre energias renováveis. O objetivo é conscientizar o público sobre o desaparecimento das principais fontes de energia nos Estados Unidos - petróleo e gás natural. Os EUA também têm enormes reservas de carvão, mas a despeito de muitos esforços, esse ainda é um combustível extremamente poluidor. Precisamos de fontes de energia alternativas.

E qual o papel dos cientistas nesse cenário, mais especificamente dos físicos?

Há muitos aspectos do problema global de energia que envolvem a física. Podemos dar muitas contribuições para que essa transição ocorra de forma pacífica, pois a falta de fontes de energia levará a enormes conflitos internacionais.

O senhor é conhecido como um físico pacifista. Como se vê dentro disso tudo?

Eu sou um estudioso da ciência básica, apesar de também ter um interesse em ciência aplicada. Passei 12 verões nos Laboratórios Bell trabalhando com um dos inventores dos transistores, e acredito que uma boa educação em física permite às pessoas resolver muitos problemas técnicos de diferentes tipos. Nos EUA, o maior exemplo foi o Projeto Manhattan, para o desenvolvimento da bomba atômica, que não teve um resultado muito desejável, mas foi dominado pelos físicos.

A bomba atômica é muitas vezes citada como um exemplo de como a boa ciência pode ser usada também para fazer o mal. O senhor se preocupa com isso quando está pesquisando?

Realmente, é algo que me preocupa muito. Mas temo que não haja solução definitiva para esse problema. Muitas pessoas já discutiram muitas formas de se lidar com ele; como, por exemplo, proibir a pesquisa científica em áreas que possam produzir algum resultado negativo. Minha convicção é de que isso não é possível. Uma vez que o conhecimento foi produzido, não há maneira 100% segura de impedir que ele seja usado com uma ou outra finalidade.

Como o senhor lida com isso?

Na física nuclear, estou muito preocupado com o trabalho contínuo com armas nucleares nos EUA. Acho que o lema mais importante para um cientista é tentar se comunicar com as lideranças políticas e com o público em geral sobre esses problemas. É isso que estamos tentando fazer com o nosso filme. A universidade na qual trabalho gerencia os dois principais laboratórios do mundo para o desenvolvimento de armas nucleares (Los Alamos e Lawrence Livermore). Toda arma nuclear que existe passou pela Universidade da Califórnia.

E isso não o incomoda?

Me incomoda muito. Conversava sobre isso com o reitor anterior e estou em contato também com o atual - que, por acaso, é físico.

Mudou alguma coisa?

Aparentemente não, porque a pesquisa continua. Mas acho que consegui alguns avanços. Há muito mais dúvidas hoje do que no passado sobre o envolvimento da universidade nessas atividades.

Houve algum trabalho seu que foi usado para fins com os quais o senhor não concorda?

Um dos meus trabalhos mais aplicados hoje refere-se ao entendimento da estrutura eletrônica de vários tipos de materiais: orgânicos, inorgânicos etc. Entre esses materiais estão os elementos radioativos pesados, como plutônio e urânio, que são importantes para fins pacíficos de produção de energia, mas, obviamente, também são de grande interesse para os militares. A essência desses materiais é estudada pelo conhecimento que eu produzi. Acho que isso está fora das minhas mãos. O que posso fazer é falar sobre o problema; e é isso que tenho feito.