Título: Divididos e sob a mira das armas, os iraquianos vão hoje às urnas
Autor: Roberto Lameirinhas
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Especial, p. H1

Sob a mira das armas e a ameaça dos grupos rebeldes, o Iraque vai às urnas hoje mais dividido que nunca. Participam da disputa mais de cem partidos e coalizões e dezenas de candidatos independentes. Menos de dois anos depois da deposição do ditador Saddam Hussein, cerca de 7.500 candidatos disputam as 275 vagas da Assembléia Nacional encarregada de eleger um novo governo de transição, redigir a nova Constituição e estabelecer as bases para a eleição de um governo definitivo em 30 de dezembro. Pelo que se sente nas ruas de Bagdá, no entanto, o processo tem tudo para não dar certo. A capital iraquiana está sitiada, isolada por bloqueios e checkpoints militares instalados por americanos. De ontem até amanhã, só pessoas diretamente envolvidas com o processo eleitoral - funcionários eleitorais, eleitores registrados e jornalistas credenciados - estão autorizadas a sair às ruas. Soldados, policiais iraquianos e guardas de segurança particulares vindos do exterior não conversam com nenhum estranho sem que sua mão esteja descansando sobre a arma. A tensão está por todos os lados, incluindo os andares dos hotéis que hospedam jornalistas estrangeiros, onde guarda-costas armados circulam nervosamente 24 horas por dia. Quatro das mais populosas províncias sunitas do norte e oeste do país - fora de controle das tropas americanas - não tiveram nem mesmo os locais de votação instalados por falta de segurança. As eleições de hoje, consideradas as primeiras livres da história do país, se realizam sob a ameaça do grupo do terrorista jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, representante da rede Al-Qaeda no Iraque, de promover um banho de sangue sem precedentes (ler na página H05). A contagem dos votos, que só deve terminar em seis ou sete dias, certamente reduzirá a representação dos sunitas no governo, ao mesmo tempo que deve consolidar o aumento do poder da maioria xiita (ler na página H03). Zarqawi tem o objetivo declarado de provocar uma guerra civil entre as duas maiores facções do Islã, o que ressuscitaria antigas reivindicações separatistas dos curdos que vivem no norte, região rica em petróleo. O aumento da violência e a ameaça secessionista também devem complicar os planos do governo de George W. Bush de declarar-se vitorioso, entregar a segurança do país às autoridades iraquianas e retirar os cerca de 145 mil soldados enviados para cá - no lançamento de uma guerra impopular para destruir arsenais de destruição em massa cuja existência nunca foi comprovada. "Não há o que mudar e não acho que alguma coisa mudará", disse um iraquiano que não quis se identificar. "Os americanos continuarão aqui e os terroristas seguirão com seus ataques. Uma eleição não tem o poder de modificar esse quadro." Cerca de 14 milhões de iraquianos se registraram para votar, mas o comparecimento deve ser muito baixo. A ameaça do grupo de Zarqawi era promover 40 atentados por dia durante o período eleitoral. Ainda que não tenha conseguido cumprir sua sinistra meta nos últimos dias, ninguém pode assegurar que ele não lance algum ataque espetacular neste dia de votação. Favoritos para se tornarem os grandes vencedores nas urnas hoje, os xiitas são os mais otimistas no futuro do Iraque. Um futuro que, alguém disse, já não é o que costumava ser. Na capital, as marcas da guerra estão em cada esquina, em cada rua, em cada praça. Edifícios destruídos pelos mísseis Tomahawk e pelas bombas inteligentes jazem, às dezenas, em ruínas. Não se passa por um único ponto da cidade que não tenha sinal de uma explosão - da parte dos rebeldes ou das forças de segurança -, de um tiroteio ou de um assassinato. Saddam mantinha a unidade iraquiana a ponta da baioneta. Reprimia levantes xiitas e curdos com grandes massacres e nunca se importou realmente com a qualidade de vida de seu povo. Mas era admirado por muita gente no país por ter contido os grupos religiosos e mantido um governo laico. Por necessidade de sobrevivência, criou alguns corpos militares de elite que lhe davam proteção e juravam fidelidade em troca de privilégios. "Esses privilégios acabaram quando os EUA decidiram dissolver o Exército iraquiano, deixando essa gente sem nenhuma perspectiva", explica um comerciante de Kahada, bairro da periferia de Bagdá. Os falcões do Pentágono que planejaram a invasão do Iraque imaginaram que a capital iraquiana seria tomada rapidamente pelas numerosas e bem armadas tropas americanas, o que realmente acabou acontecendo em abril de 2003, e contavam com o fato de que seriam recebidos com festa pelos iraquianos em Bagdá - o que nunca ocorreu. Treinados para fazer a guerra, os antigos homens de confiança de Saddam reuniram suas armas e partiram para a resistência, numa guerra de guerrilha que não dá um dia de trégua aos militares dos Estados Unidos e transforma o país num pesadelo sem fim.