Título: Ascensão xiita apavora países vizinhos
Autor: David Hirst
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Especial, p. H3

Pela primeira vez em séculos, os xiitas estão prestes a virar governantes - ou pelo menos se tornar a comunidade politicamente dominante - de um país árabe importante. A princípio, as eleições iraquianas ratificarão e darão legitimidade constitucional a uma transformação que avança desde a queda de Saddam Hussein. No mundo árabe, à exceção do Líbano, com sua grande população cristã, os governantes de todos os 22 Estados têm saído tradicionalmente da maioria sunita ortodoxa. Mas até agora isto incluiu dois países, Iraque e Bahrein, onde, contra a tendência geral, os xiitas são maioria. A correção desta anomalia será importante, considerando a história e o peso geopolítico do Iraque e as condições tumultuosas em que ela acontece.

Foi no Iraque, afinal, na luta sangrenta pela sucessão do profeta, que o grande cisma do Islã primeiro criou raízes; foi ali que, durante séculos, os xiitas sob o domínio otomano sunita suportaram o peso dos conflitos com os impérios persas xiitas; foi ali que, nos anos 20, os xiitas lideraram a rebelião contra o domínio britânico, mas acabaram mal representados no Estado iraquiano moderno; foi ali que, sob o baathismo, os sunitas transformaram o governo da minoria no despotismo da espécie mais chauvinista e brutal.

A idéia do domínio xiita estabelecido por eleição no Iraque preocupa profundamente os regimes árabes, tenham ou não população xiita. O rei Abdala, da Jordânia, declarou publicamente o que outros guardam para si. Para ele, o grande perigo é o Irã, o único Estado de maioria xiita do mundo (à exceção do Azerbaijão) que também é governado por xiitas - e, além disso, clerical e militantemente governado.

O "interesse específico" do Irã, diz ele, é "a existência de uma república islâmica do Iraque; se isso acontecesse, estaríamos sujeitos a uma série de novos problemas que não se limitariam às fronteiras do Iraque." Abdala alertou para um "crescente" xiita estendendo-se do Irã ao Iraque, Síria e Líbano, desestabilizando os países do Golfo e representando um desafio aos EUA.

"Foi a primeira vez", disse o comentarista libanês Joseph Samaha, "que um dirigente árabe usou uma linguagem tão crua, direta e perigosa para incitar publicamente contra uma fé particular e advertir que ela pode transformar-se num inimigo interno contra a maioria." Para outros comentaristas árabes, o que a declaração indica, no fundo, é o medo da democracia e a perspectiva de que o Iraque agora demonstre o que a Palestina já demonstrou - que no mundo árabe as pessoas têm mais escolha eleitoral sob ocupação do que exercendo a soberania.

"Eles estão apavorados", disse Salama Nemat, "com a possibilidade de as eleições se mostrarem contagiosas e se espalharem para os Estados e povos vizinhos do Iraque. O perigo para certos governos árabes é a arma de destruição em massa democrática que poderia destruir a estrutura de tirania e atraso que sufoca seus povos." Qualquer democracia iraquiana certamente assumirá, de início, o caráter "sectário" que o rei Abdala deplora.

A exploração cruel e discriminadora do sectarismo que foi a fundação do regime de Saddam tem de dar lugar a um sistema cuja estrutura básica seja a fatia justa e representativa que as várias comunidades dos países adquirirem nele, com os xiitas adquirindo a maior.

Também inevitavelmente, o Irã, para o qual a emancipação de seus correligionários iraquianos é um grande reforço potencial de sua influência regional, é o único vizinho do Iraque a estar feliz com isso. Ironicamente, o Irã foi muito mais rápido que os amigos árabes dos EUA para "reconhecer" a nova ordem iraquiana instalada pelos americanos e é o defensor mais fervoroso das eleições patrocinadas pelos americanos.

Os regimes árabes com cidadãos xiitas, especialmente no Golfo, talvez tenham os motivos mais fortes para se alarmar, porque, como Saddam, os discriminaram em graus variados. A busca por direitos iguais tem sido comum aos xiitas em todos os Estados árabes modernos.

O único país onde os xiitas basicamente conseguiram esses direitos, por meio da guerra civil e também de um sistema político único, confessionalmente organizado, é o Líbano. "O Iraque poderia representar um modelo democrático para o mundo árabe-muçulmano, que experimentou conflitos inúteis e utópicos durante 14 séculos", disse o xeque Ali Salman, um líder xiita de Bahrein.

Embora constituam 60% da população do Bahrein, os xiitas aparentemente não almejam uma mudança de regime no estilo iraquiano, mas apenas uma representação maior do que a obtida até agora. Mas a emancipação xiita iraquiana também é perturbadora para um país não-xiita como a Jordânia, porque, pequena e frágil, ela é profundamente afetada por quaisquer reviravoltas políticas em vizinhos mais poderosos e sua autocracia relativamente benigna também se assenta numa discriminação, favorecendo os transjordanianos em detrimento dos palestinos.

Na Síria multiconfessional, os alawitas minoritários dominam o regime; o triunfo xiita no Iraque poderia encorajar os sunitas majoritários a reconquistar o poder que - ao contrário de seus correligionários no Iraque - perderam com a ascensão do baathismo.

É óbvio que todos esses regimes, como os próprios insurgentes iraquianos, anseiam pela restauração da velha ordem dominada pelos sunitas ou baathistas, ou mesmo por alguma figura como Saddam para liderá-la - ou pelo menos, como o rei Abdala uma vez afirmou, "alguém com um histórico militar que tenha experiência sendo durão".

Mas é igualmente óbvio que os xiitas, lembrando o que aconteceu nos anos 20, não permitirão isso. Por isso, como os americanos, os regimes agora calcularam que, embora a realização de eleições, que uma grande parte da comunidade sunita poderá boicotar, seja um grave risco, sua não realização seria um risco ainda maior.

Todos esses regimes - até a Síria, que os EUA acusam de auxiliar a insurgência - conclamam os sunitas a dar sua vital aprovação ao tipo de consulta popular que eles nunca permitiriam em seus próprios países.

Pois o que faz os regimes árabes temerem uma democracia iraquiana os faz temer ainda mais a guerra civil; e embora bastante possível com eleições, esta seria ainda mais possível sem elas.

Os xiitas até agora foram extraordinariamente contidos em sua resposta ao terror antixiita que parece ser uma parte secundária da resistência sunita à ocupação americana. Os principais líderes religiosos xiitas iraquianos claramente desejam manter distância do Irã e, segundo uma pesquisa recente, o apoio dos sunitas a um "governo islâmico" pleno de alguma espécie é o dobro do apoio dos xiitas.

No entanto, se não puderem tomar posse de sua herança por meios constitucionais, os xiitas muito provavelmente serão atraídos para meios inconstitucionais e violentos. E o Irã se envolveria profundamente nisso.