Título: Tocantins, um rio à espera das barragens
Autor: Nicola Pamplona
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2005, Economia, p. B10

O motor da voadeira, embarcação que faz o transporte da população ribeirinha, é ouvido ao longe. Logo, logo, famílias inteiras aparecem na margem do rio para ver quem está passando. Pode ser apenas curiosidade. Ou então para mandar um recado, pelo barqueiro, para conhecidos em outras roças no caminho, ainda desprovidas de modernidades como o telefone. Para essa gente, os 2,4 mil quilômetros de leito do Rio Tocantins, que nasce perto do Distrito Federal e deságua no litoral paraense, funcionam como via de transporte, fonte de alimentos, chuveiro e até correio. No período de seca, entre maio e outubro, vira também área de lazer, já que enormes bancos de areia formam praias naturais que atraem milhares de pessoas das redondezas. A população é simples, a maioria ainda vive em casas de sapê com teto de palha. Vivem basicamente da agropecuária de subsistência e da pesca. Mas, de uns tempos para cá, vêm se aprofundando em um tema que pode afetar diretamente suas vidas: a geração de energia elétrica. O Tocantins é considerado uma das principais fronteiras energéticas do País, com seis usinas projetadas - além de Lajeado, já em operação - apenas no Estado que dá nome ao rio. Um potencial de 6 mil megawatts (MW), metade dos 12,6 mil MW da Usina de Itaipu, a maior do mundo. Se concluídas, as barragens podem transformar o rio em "um grande lago", segundo imagem forjada por ambientalistas.

Lago que será usado para navegação, por meio da Hidrovia Araguaia-Tocantins, e para garantir o suprimento de energia para o desenvolvimento do País, argumentam os partidários das obras. Mas, por outro lado, vai submergir enormes áreas de um cerrado já castigado pela pecuária intensiva e pela soja, contra-atacam os opositores. "O governo tem de abrir um debate sobre essa questão, pois o País precisa de energia para o desenvolvimento, mas não pode abrir mão de seus rios", diz o professor Luiz Pinguelli Rosa, coordenador do programa de planejamento energético da Coppe/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás. "Não dá mais para fazer como no regime militar, quando se construía usinas sem consultar ninguém."

ALTERNATIVAS

Segundo o último Atlas Hidrológico publicado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o crescimento da oferta de energia no Brasil passará por três bacias principais: Amazonas, com potencial estimado em 105,4 mil MW; Paraná, com 60,3 mil MW; e Tocantins-Araguaia, com 27,5 mil MW de potência estimada. Por ser a bacia com projetos mais avançados, esta última representa o grande teste do governo na tentativa de construir grandes barragens no Brasil em tempos de maior conscientização ambiental e confrontos mais acirrados com as populações atingidas. Foi com grandes usinas como Itaipu, no Rio Paraná, e Tucuruí, no próprio Tocantins, mas já em território paraense, que o Brasil conseguiu energia para desenvolver seu parque industrial nas últimas décadas.

"Os rios das Regiões Sul e Sudeste estão saturados, enfrentando cada vez mais conflitos de uso das águas. Então, no médio prazo, a tendência é ir para áreas de florestas mais intactas", diz o diretor de licenciamento do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Nilvo Alves. Nesse caso, o licenciamento ambiental é bem mais complexo, admite, principalmente em se tratando de áreas planas como o Planalto Central ou a Floresta Amazônica, já que as áreas alagadas tendem a ser maiores.

Uma das usinas em análise no órgão ambiental ilustra bem a questão: Ipueiras, no Rio Tocantins, deve alagar uma área de 1,1 mil quilômetros quadrados para gerar 480 MW, quando a média considerada ideal é de 1 quilômetro quadrado para cada 1 MW gerado. A usina deve ser incluída no primeiro leilão de energia nova que será promovido pelo Ministério de Minas e Energia (MME) no segundo trimestre, se o licenciamento for aprovado. "Não dá para dizer que Ipueiras é inviável, mas tem de ser muito bem avaliada", explica Alves.

Duas usinas do projeto original para o Rio Tocantins já foram arquivadas pelo órgão de licenciamento ambiental. Tupiratins (830 MW), e Serra Quebrada (1.320 MW) têm grande impacto sobre terras indígenas, que dependem de autorização do Congresso para serem removidas. Marabá (2.160 MW), empreendimento projetado para o Pará, pouco antes de Tucuruí, deve seguir o mesmo caminho. "É um projeto muito complicado", afirma o diretor do Ibama.

Sobram então São Salvador (280 MW), Peixe Angical (450 MW), a já citada Ipueiras e Estreito (1.080 MW). As duas primeiras, de menor porte, já têm licença para a construção da barragem. A última, licitada em 2002, ainda enfrenta problemas. O primeiro relatório ambiental foi rejeitado pelo Ibama e uma complementação dos estudos será avaliada a partir desta semana.

As dificuldades no Rio Tocantins - aliadas ao impasse em torno de Barra Grande, na divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde os atingidos acamparam na estrada que dá acesso às obras - sinalizam que o Brasil terá de buscar alternativas para ampliar seu parque gerador de energia.