Título: Bush exalta eleições no Iraque, mas enfatiza agenda doméstica
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/02/2005, Internacional, p. A14

Embalado pelas boas notícias e imagens produzidas pela eleição do domingo no Iraque, o presidente George W. Bush pretendia usar seu discurso anual ao Congresso, previsto para zero hora de hoje em Brasília, para defender a manutenção do curso de sua política no Oriente Médio e refocalizar a atenção dos americanos para a ambiciosa agenda de reformas domésticas, a começar pelo seu polêmico projeto de privatização parcial do sistema federal de previdência social instituído em 1933. Determinado a alicerçar seu legado em reformas como essa, revertendo o último grande programa do New Deal de Franklin D. Roosevelt que permanece essencialmente intocado, o presidente americano deveria dedicar-lhe a primeira metade de seu discurso de 40 minutos, cujos grandes temas foram antecipados pela Casa Branca (ver quadro).

Sublinhando a ênfase na agenda interna, que inclui também iniciativas de reforma das leis de imigração, do sistema tributário, uma nova lei de energia e a criação de um teto para indenização judicial em processos que envolvem acusação de erro médico, Bush anunciaria uma nova disposição de conter gastos e restabelecer o sentido da disciplina fiscal, que vigorou nos oito anos da administração Clinton e foi abandonado durante os quatro primeiros anos do atual governo, antes mesmo de os ataques terroristas de 11 de Setembro imporem novas exigências de gastos com segurança e defesa que contribuíram para criar déficits federais recordes e colocar os EUA na situação insustentável a longo prazo de ser, ao mesmo tempo, o país emissor da moeda de reserva internacional e o maior devedor do mundo.

"É chegada a hora de dar prioridade à disciplina fiscal", afirmou um alto funcionário da administração, numa entrevista de apresentação do discurso presidencial. Os americanos saberão como Bush pretende fazer isso na próxima segunda-feira, quando enviar ao Congresso sua proposta de orçamento para o ano fiscal de 2006, que começa em 1.º de outubro.

Ontem, ele anunciou que a execução de sua proposta orçamentária reduzirá pela metade, nos próximos quatro anos, o estratosférico déficit anual do ano passado de US$ 521 bilhões, algo equivalente ao PIB do Brasil.

Um oportuno estudo da situação fiscal dos EUA, divulgado no início da semana pela Controladoria-Geral da União, chamou atenção para a importância do restabelecimento de uma política fiscal racional. Depois de pedir "um reexame fundamental de todas as grandes políticas de taxação e gastos", o estudo advertiu que "a continuação deste caminho de insustentabilidade fiscal erodirá seriamente nossa economia, nosso padrão de vida e a própria segurança nacional".

A análise aventou mesmo a possibilidade de os EUA serem atingidos por uma súbita e catastrófica perda de confiança dos investidores externos que hoje financiam os déficits internos e externos do país. "O problema é demasiado grande para ser resolvido apenas pelo crescimento econômico ou por modestas mudanças nas atuais políticas de taxação e de gastos".

O problema, para Bush, é que a grande iniciativa reformista que começaria a detalhar ontem poderá agravar ainda mais o panorama fiscal americano. O plano do presidente prevê que trabalhadores mais jovens possam dedicar uma parte significativa dos 6,2% do salário que hoje obrigatoriamente devem contribuir para a previdência social (o empregador faz idêntica contribuição) possa ser investido em fundos de pensão privada. Os que têm mais de 50 anos continuariam no sistema atual.

Se, por um lado, a privatização parcial aliviaria as obrigações futuras do sistema, que em dois anos começará a pagar pensões para os primeiros aposentados da numerosa geração dos baby-boomers, nascida entre 1945 e 1964, por outro, ela subtrairá dos cofres da previdência social uma receita estimada por economistas do próprio governo em US$ 2 trilhões em dez anos.

Por essa e outras razões, que incluem o risco político de mexer no mais antigo, maior e mais bem sucedido programa social da história do país, a proposta presidencial é vista com forte ceticismo mesmo entre líderes parlamentares republicanos.

Os democratas e muitos republicanos aceitam a ampliação dos incentivos fiscais já existentes para que os americanos invistam em previdências sociais privadas, mas como um acréscimo e não no lugar do sistema atual.

Este tem sua solvência financeira garantida por pelo menos mais duas décadas, segundo as estimativas mais pessimistas, e poderá ser perpetuado com pequenas mudanças, como uma gradual elevação da idade mínima para a aposentadoria - que hoje já está subindo de 65 para 67 anos -, uma suave redução de benefícios para os pensionistas acima de certa faixa, e modestíssimos aumentos da alíquota de contribuição. Hoje, a aposentadoria média paga pelo sistema a 36 milhões de pensionistas equivale R$ 3.500 por mês.

Mobilizados para impedir as mudanças que Bush propõe, os democratas anteciparam-se ontem ao discurso do presidente desafiando-o a responder duas perguntas. "Primeiro, qual o tamanho do déficit federal adicional que a reforma criará nas próximas três décadas?", indagou o senador Harry Reid, de Nevada, o novo líder da minoria democrata.

"Segundo, queremos saber até que ponto os trabalhadores da classe média terão seus benefícios reduzidos sob o plano e se os cortes serão aplicados também às pessoas que optarem por não arriscar seu dinheiro em contas de previdência privada?"