Título: Mais rica, Irlanda passa por crise de identidade
Autor: Lizette Alvarez
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/02/2005, Economia, p. B6

Entre goles de café com leite e lamentos sobre o preço estarrecedor dos imóveis, os irlandeses começam a se fazer uma pergunta do século 21: quem queremos ser como país agora que temos todo esse dinheiro? "Certamente, estamos num novo território, onde nunca estivemos", disse Joseph O'Connor, romancista irlandês de best-sellers que recentemente escreveu Star of the Sea. Não faz muito tempo, menos de uma geração, que a Irlanda era uma nação miserável, com muito pouca relevância nos assuntos europeus. Encontrar um emprego aqui significava pegar um avião para fora do país. As pessoas contavam seus centavos e, para muitos, a pobreza era um componente teimoso da vida.

Mas o salto da Irlanda para dentro da União Européia (UE), aliado a políticas econômicas agressivamente pró-negócios, mudaram tudo. Em pouco mais de uma década, o chamado Tigre Celta foi transformado de um dos países mais pobres da Europa Ocidental em um dos mais ricos do mundo. Seu produto interno bruto (PIB), que em 1987 não chegava a 70% da média da UE, saltou para 136% da média em 2003, enquanto a taxa de desemprego caiu de 17% para 4%.

A transformação, porém, não teria sido completa sem um elemento adicional. No momento em que a economia florescia, a Igreja Católica Romana, indubitavelmente a instituição mais poderosa do país, foi maculada por um escândalo de pedofilia. Os eventos, juntos, provocaram um impacto profundo. "Existe gente entre nós que adora Versace da forma como nossas avós adoravam a Virgem Maria", disse O'Connor.

Em novembro, a revista The Economist, no seu relatório anual da Unidade de Informações, consolidou a reputação de potência da Irlanda ao declarar que o país tem a melhor qualidade de vida do mundo.

Mas esse novo status trouxe consigo uma crise de identidade que está obrigando o país e seu governo a lidar com o lado negativo da riqueza e das obrigações por ela impostas. Embora poucas pessoas diriam que a Irlanda estava melhor há 20 anos, algumas estão começando a ressaltar que a riqueza, sozinha, sem introspecção, não necessariamente traz felicidade. Na realidade, pode trazer novos problemas.

Por exemplo, como um país antes conhecido por enviar legiões de pessoas para o exterior deve lidar agora com seus imigrantes? O que significa ser irlandês ante o fato de que tanto da psique nacional está ligada a séculos de pobreza?

Os jornais irlandeses estão cheios de relatos das arapucas do crescimento, secularização e riqueza, alguns deles triviais, uns poucos graves: o suicídio é recorde; o divórcio, cada vez mais comum; os preços dos imóveis estão nas alturas, o trânsito está horrendo, a dívida pessoal cresce em progressão geométrica e os adolescentes tomam drogas demais e compram coisas demais.

Mesmo o alto preço de uma xícara de café se tornou um pára-raio, levando as pessoas a rotularem o país de Irlanda explorador.

Levantamento divulgado na semana passada pela companhia de pesquisa Mintel Ireland revelou que a maioria das pessoas não sente que seu estilo de vida melhorou nos últimos anos, principalmente porque o custo de vida explodiu. Os moradores de Dublin são os mais insatisfeitos. Outro estudo ressaltou que os níveis de estresse em todos os lugares da Irlanda estão aumentando muito.

Emily O'Reilly, a ombudsman do governo, aventou o debate sobre a nova identidade da Irlanda, num discurso em novembro, lamentando os valores enganosos do país na esteira do seu sucesso econômico e sua florescente secularização.

"Muitos de nós têm aversão à festa de vulgaridade que é muito da Irlanda moderna", começou O'Reilly, antes de continuar citando o mergulho no materialismo, linguagem obscena, violência aleatória, pobreza moral e a cultura da gratificação imediata.