Título: Vendaval de besteiras
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2005, Notas & Informações, p. A3

A interminável seqüência de derrapadas do presidente Lula nos seus também incessantes improvisos já tem lugar assegurado no folclore político nacional - e esta página não teria novas razões para delas se ocupar, no plano estrito do que a linguagem corrente chama as mancadas do Lula. Ele ainda não chegou a dar parabéns à família de um falecido (exemplo citado pelo Aurélio para ilustrar o verbete gafe), mas as suas impropriedades às vezes não ficam muito distantes disso. É a sua repetição que torna enfadonho comentá-las.

A propósito, o que de melhor terá saído na imprensa a respeito é a análise da cientista política Luciana Fernandes Veiga, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), resumida ontem neste jornal pela colunista Dora Kramer. Luciana explica por que tem tanto sucesso junto às platéias a quem Lula de hábito se dirige o que ela denomina, com agudo senso de percepção, a "quase-lógica" dos seus argumentos - que, por essa característica, não resistiriam, em outro ambiente, nem mesmo a um exame puramente formal.

"Lula consegue estabelecer acordos tácitos com o público sobre as premissas e pressupostos dos discursos porque comunga com as crenças e valores dos seus interlocutores", escreveu a professora, numa referência à conhecida dicotomia entre o senso comum e o pensamento rigorosamente lógico. "Quando improvisa, Lula não tem a pretensão de ser preciso, busca apenas chegar à consonância com o público, assim como se comporta o 'seu' João na conversa corriqueira no balcão do bar ou a dona Maria no portão com a vizinha."

Para o seu público, portanto, não há nada errado quando o presidente chama tsunami de vendaval. Nem quando usa essa metáfora para descrever a economia do País ao tempo de sua chegada ao poder, como fez anteontem em Guarulhos. A mídia, que se delicia com esses tropeços, raramente dá o mesmo destaque a afirmações de Lula piores do que gafes, por falsearem a realidade. Apenas o jornalista Gustavo Patu apurou que "estava simples e grosseiramente errada" boa parte dos dados citados por Lula no Fórum Social Mundial.

Um dos "erros" cometidos pelo presidente para se gabar de seus feitos foi a sua assertiva de que, ao assumir, o déficit do Brasil em transações correntes era de US$ 32 bilhões. Era, na verdade, cerca da quarta parte disso: US$ 7,6 bilhões. Lula afirmou ainda que o risco país estava em 2.400 pontos. Estava em 1.446. Mais importante ainda, dado o público a que se dirigia, ele inflacionou a "quase 2 milhões" o 1,5 milhão de empregos criados no seu governo.

Quarta-feira, em Guarulhos, disse que "deixaram para nós, ao longo de muitos anos, uma dívida social quase impagável", o que o seu ouvinte típico só poderá traduzir por "nunca antes um governo fez qualquer coisa pelo social". Ora, é inconcebível que Lula não saiba que, para citar apenas o óbvio, além de investir pesadamente em educação e saúde, a administração que o antecedeu foi pioneira no lançamento de programas consistentes de transferência de renda, como o Bolsa-Escola, agora incorporado ao Bolsa-Família.

Lula há de saber também que a série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do IBGE, revela uma constante - embora insuficiente - evolução dos indicadores socioeconômicos da população. "Quase impagável" ou não, a dívida social diminuiu sistematicamente ao longo da década passada. A ouvir o presidente, é como se só o seu governo tivesse começado a pagá-la. Outra ofensa aos fatos está no contexto do "vendaval". Disse Lula: "Pegamos a casa depois de um vendaval como aquele que deu na Ásia e tivemos de consertar."

Ele escamoteia que a casa estava do jeito que a encontrou - com indicadores financeiros alarmantes - única e exclusivamente devido ao justificado pavor dos investidores diante da perspectiva de o Brasil vir a ter um governo que poderia "mudar tudo isso que está aí", como o PT vinha prometendo pelo menos até dezembro de 2001 (na Carta de Olinda que falava em "ruptura"). Ou o risco país teria chegado onde chegou se o tucano José Serra fosse o favorito?

Como já se ressaltou neste espaço, Lula inventou a campanha eleitoral permanente, com o seu cortejo inseparável de tiradas demagógicas. Na sua obsessão com a reeleição, tudo bem que prossiga com seu "vendaval de besteiras", com o qual reprisa o festival do saudoso Sergio Porto. Mas um vendaval de mentiras não fica bem para um presidente da República.