Título: Juiz não pode ser um cego cumpridor da lei, diz Limongi
Autor: Fausto Macedo,Simone Harnik
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2005, Nacional, p. A8

O presidente da Associação Paulista de Magistrados, desembargador Celso Limongi, pregou ontem que "o juiz não pode ser um cego cumpridor da lei". Líder da reação contra o ministro Nelson Jobim - que sugeriu aos magistrados que "não ajam como donos da Nação" -, Limongi distribuiu nota de repúdio, alegando que sua classe trabalha pela erradicação da pobreza e da marginalização. Aos 63 anos, 3 filhos, na carreira desde janeiro de 1969, integrante do Tribunal de Justiça de São Paulo, ele falou sobre leis e a Constituição. Por que a reação? Manifestei minha insatisfação, que é de toda a categoria. Ele (Jobim) não pode fazer essas agressões. Tem de parar, precisa ser mais comedido e mais justo. Um presidente do STF não pode sair assacando ofensas contra os magistrados. É atribuição dos juízes agirem para erradicar a pobreza? O artigo 3.º da Constituição é uma ordem que se dá e não se fala nos poderes. Está lá: constitui objetivos fundamentais da República construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. É uma ordem a todos os poderes. Quando o juiz julga precisa interpretar o contrato e a lei de acordo com esses objetivos. Quando tenho dúvida vou decidir sempre procurando erradicar a pobreza, reduzir desigualdades e promover o bem de todos sem preconceitos. É obrigação do Judiciário. Não é obrigação do juiz cumprir o que manda a lei? Acima de tudo a Constituição e os princípios fundamentais. O Estado democrático não é só um Estado de leis. O nazismo era assim, o Brasil também na Revolução. O juiz não está aqui para desobedecer a lei, mas precisa dar uma interpretação da lei conforme a Constituição. Eu aplico a lei, mas não desconheço as desigualdades. Sua pregação não invade o papel de outros poderes? Se o Legislativo fosse neutro, legislasse para o bem comum, a gente cumpria a lei. Mas é preciso ser malicioso. O juiz tem que cumprir a lei? É fácil falar isso, mas quando por trás da lei você tem um legislador ou alguém que inspire mal o legislador, quando ele age maliciosamente e faz uma lei que só vai beneficiar determinado grupo ligado ao poder, o juiz tem que ser malicioso também. O juiz tem que saber como vai cumprir essa lei. Não podemos ser ingênuos. Devemos interpretar a lei de acordo com a Constituição. A lei tem que tratar todo mundo igual. Senão eu não vou aplicar a lei. O juiz tem que ser imparcial, mas se ele cumpre uma lei parcial ele está sendo parcial. Se o juiz cumpre uma lei que beneficia grupos ligados ao poder, ele não está sendo imparcial. O Estado não impõe ao cidadão o devido cumprimento da lei, até sob pena de prisão? Tem lei que não é feita para os juízes cumprirem. O juiz não pode ser um cego cumpridor da lei. Eu tenho balizas, não sou arbitrário. Se a lei trata desigualmente as pessoas eu posso dizer que ela é inconstitucional. Eu estou dando cumprimento à Constituição e não cumpro a lei. Não cabe ao STF decidir pela constitucionalidade das leis? Todos os juízes interpretam a Constituição. É o controle difuso. O controle do Supremo é concentrado. O difuso é feito por todos os juízes. Cada juiz tem o direito e a obrigação de declarar a inconstitucionalidade de uma lei no caso concreto, quando julga uma ação. O sr. critica súmula vinculante. Eles querem um Judiciário domesticado. O Banco Mundial, que financia a reforma do Judiciário da América Latina e Caribe, quer um Judiciário previsível, que mande cumprir contratos-padrão celebrados entre as nossas empresas e os grandes complexos econômicos financeiros. O governo federal quer o Judiciário domesticado porque senão não vêm esses investimentos. Esse pessoal quer um Judiciário que garanta os negócios deles, mesmo em detrimento e do sucatamento das empresas nacionais. Não podemos admitir. Minha preocupação é com a Constituição. Se uma lei favorece apenas esses grandes conglomerados, como dar cumprimento a ela? As pessoas precisam parar de ser ingênuas, de acreditar pura e simplesmente na lei, no Banco Mundial, nos contratos. As pessoas não podem ser ingênuas, os juízes muito menos. Existe o princípio da razoabilidade. Eu aplico muito isso. É a aplicação do direito constitucional. Quando verifico que uma lei é absolutamente irracional, que não vai fazer Justiça no caso concreto eu posso deixar de cumprir essa lei.