Título: 'Ninguém merece isso, 8 anos sem sim nem não'
Autor: FAUSTO MACEDO
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Nacional, p. A5

Lado direito do corpo paralisado por um derrame, diabética, hipertensa, dois filhos desempregados, à beira de ser despejada do apartamento de dois quartos e sala em Copacabana, no Rio, a terapeuta Sandra Novarro espera por justiça. "Acho que nenhum ser humano merece isso, ninguém pode viver assim, 8 anos nessa vida, nem sim e nem não", reclama. A busca de Sandra teve início em 1997, a 24 de agosto, quando perdeu a mãe, Edna Cleoo, artista plástica, vítima de acidente doméstico. Aos 67 anos, Cleoo tropeçou na escada do sobrado onde vivia e mantinha seu ateliê, na Rua Cardeal Arcoverde, bairro de Pinheiros, em São Paulo. Na queda, bateu a cabeça e morreu. Cleoo tinha seguro de vida. Fechou contrato em 1986, a moeda dos brasileiros era o cruzado do presidente Sarney. Quando morreu, a moeda era o real de Fernando Henrique. Ela desembolsava R$ 250 todo mês. A polícia abriu inquérito para apurar sua morte. Em janeiro de 1998, a seguradora notificou Sandra que não iria pagar o prêmio, alegando que sua mãe caíra da escada porque teria "ingerido bebida alcoólica". Sandra foi à Justiça com ação de cobrança. Em primeiro grau, a seguradora foi condenada a pagar a importância de R$ 510 mil. Começou a gincana dos recursos. Em 11 de março de 2003, por dois votos contra um, o 2.º Tribunal de Alçada Civil acolheu apelação da seguradora para isentá-la do pagamento. Inconformada, Sandra foi à réplica, com um recurso denominado embargos infringentes. Seis meses depois, em 30 de setembro, o tribunal manteve a decisão anterior. Os advogados de Sandra tentaram levar o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o 2.º Alçada Civil rejeitou o pedido. Contra essa decisão, novo recurso, agravo de instrumento. Mas o ministro-relator no STJ negou o andamento do recurso. O motivo: o xerox da primeira parte da papelada estava com a data do protocolo ilegível. Sandra arriscou novo recurso, um agravo regimental, por meio do qual ela sustentou que bastaria verificar a data na origem, o tribunal paulista. Ela também anotou que não teria como controlar a qualidade do tonner da máquina de xerox da própria corte onde foi tirada cópia dos documentos. CILADA "A demora é desesperadora", depõe Sandra, aos 56 anos. "Você tem a sua vida toda em suspenso e fica alimentando esperança na Justiça. Tenho direito a receber o prêmio, é uma coisa minha." Com as dificuldades que a saúde abalada lhe impõe, ela não falta a uma única audiência judicial. Da última vez, arrumou um dinheiro, entrou no ônibus e desembarcou em São Paulo a tempo de acompanhar o advogado até o fórum. Refém da cilada dos códigos processuais, ela vai se mantendo à custa de bicos em hospitais do Rio. Sandra acompanha pacientes que aguardam cirurgia. Ganha R$ 50 por jornada de 30 horas. "Como vou arrumar emprego fixo nessas condições?", diz, atribuindo o derrame ao trauma pela perda da mãe. "De fome não vou morrer, mas do jeito que vão as coisas acabo virando moradora de rua." Aluguel atrasado, o despejo bate à sua porta. "É o segundo na minha vida", lamenta. Fala com orgulho da mãe. "Era uma artista plástica talentosa, deixou 3 mil obras no seu acervo, ganhou prêmios em São Paulo." O valor da prestação do seguro, lembra, era descontado diretamente de uma conta de Cleoo. RECADO "Foi a companhia que fez a proposta de seguro à minha mãe, depois não quis pagar alegando que ela estava em coma alcoólica quando morreu. Nunca ouvi falar de alguém que está em coma e consegue subir escada." Ela vê "coisas estranhas" nessa história. Não se conforma com o fato de que, no início da demanda, a Justiça lhe deu razão. "O juiz entendeu que não havia discussão, que eu tinha direito a receber e pronto. Mas aí começaram os recursos, um atrás do outro, e não acaba mais." À Justiça, um recado: "Estou decepcionada."