Título: Antes da avenida, a tesoura do censor
Autor: Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Nacional, p. A9

Carros alegóricos, fantasias, adereços, descrição de enredos, letras de samba. É difícil imaginar material tão festivo sendo analisado pela rigorosa censura prévia da Polícia Federal, durante o regime militar. Mas nenhum desfile de carnaval, nem mesmo do mais desconhecido bloco da periferia, podia sair às ruas sem o consentimento dos censores, nos anos 70 e início dos 80. Croquis mostrando todos os detalhes das apresentações eram encaminhados ao Serviço de Censura e Diversões Públicas.

Um extenso acervo sobre a fiscalização do carnaval está sendo catalogado pelo Arquivo Nacional para ser aberto ao público até o fim deste ano.

Na edição de domingo passado, o Estado mostrou que o Arquivo Nacional também tornará disponíveis para consulta mais de 70 mil documentos sobre a censura às letras de músicas compostas durante o governo militar.

"Até a decoração dos salões de clubes para bailes de carnaval era submetida à censura", conta o chefe da Coordenação de Documentos Escritos do Arquivo Nacional, Mauro Lerner Markowski. Os desenhos estão sendo catalogados, mas, no material analisado até agora, ainda não foram encontradas fantasias ou adereços censurados. "Acredito que houvesse uma preocupação das escolas de samba e dos blocos em não correr risco de ter uma fantasia ou um carro alegórico vetado ou de ter de fazer mudanças de última hora", afirma Lerner.

Os pedidos de autorização para levar o carnaval do Rio às ruas foram encontrados por acaso por funcionários do Arquivo Nacional na sede da Polícia Federal, no centro da cidade, há 12 anos. No galpão havia, além das letras de músicas e peças de teatro, milhares de livros e revistas também submetidos à avaliação da censura. Todo o material está sendo, aos poucos, catalogado para ser aberto ao público.

SALGUEIRO

As lembranças do cenógrafo e carnavalesco Fernando Pamplona, que mudou a história do Salgueiro, sobre os tempos do autoritarismo e da censura são sombrias, mas também divertidas.

"Carros alegóricos, fantasias, tudo passava pela censura. Os caras às vezes iam na quadra do Salgueiro. Eles aporrinhavam, a censura sempre foi aporrinhativa. E eles já me conheciam porque censuravam o teatro também", diz Pamplona.

Em 1970, quando o Salgueiro levou para a avenida o enredo Praça Onze, os censores implicaram com o carro alegórico que reproduzia um bar, inclusive um banheiro masculino, onde um homem de terno branco fazia xixi no mictório. "O censor disse que não podia. A mão que estava embaixo ficou em cima, apoiada na parede, ao lado da outra mão. Eu expliquei que o sujeito estava vomitando", conta o carnavalesco. E o censor: "Vomitando pode!"

Também no teatro, Pamplona teve de driblar a censura. Ele lembra da encenação de Vamos Brincar de Amor em Cabo Frio, de Sérgio Viotti.

Convidado a preparar o cartaz e a decoração da entrada do teatro, o cartunista Ziraldo encheu o banheiro daquelas frases típicas de portas e paredes dos sanitários masculinos.

"O censor ia de 15 em 15 dias conferir a peça. Um dia foi ao banheiro, viu a brincadeira e tivemos de apagar tudo", lembra.

"Os censores tinham cadeira cativa no teatro. Quando não iam, davam a permanente para um amigo, a amante. Todo mundo assistia à peça", diz Pamplona, provocador.

VETO FAMOSO

O jornalista e pesquisador Sérgio Cabral lembra o famoso veto da censura, em 1969, a um dos mais belos sambas-enredo, Heróis da Liberdade, última parceria de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola, do Império Serrano.

O País vivia os primeiros meses do AI-5, que endurecia a repressão aos opositores do regime.

"Mano Décio e Silas de Oliveira foram chamados para uma conversa no 1.º Exército", conta Cabral. Os militares não gostaram da palavra "revolução" em um dos versos. Teve de virar "evolução". E ficou assim: "Já raiou a liberdade/ a liberdade já raiou/ essa brisa que a juventude afaga/ esta chama que o ódio não apaga/ pelo universo é a evolução (em vez de revolução)/ em sua legítima razão".

Com a nova letra, o Império Serrano desfilou na Avenida Presidente Vargas e teve de se contentar com o quarto lugar na disputa vencida pelo Salgueiro.

A censura do regime militar era uma imposição que, não cumprida, implicava em punições como a prisão dos rebeldes.

Antes do golpe de 64, porém, Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira já tinham sentido a pressão das autoridades pela mudança em um samba-enredo.

Em 1960, no governo Juscelino Kubitschek, eles compuseram Medalhas e Brasões, que fazia referência ao Paraguai e ao regime ditatorial do presidente Solano Lopez.

A embaixada paraguaia protestou e o Departamento de Turismo brasileiro recomendou alterações no samba. "Eles mudaram a letra, mas Mano Décio disse que tinha escrito o que aprendera na escola", lembra Sérgio Cabral.

IGREJA

Abolida a censura oficial, os carnavais mais recentes têm sido marcados por conflitos entre o samba e a Igreja Católica, pelo que os religiosos consideram desrespeito aos símbolos sagrados.

O caso mais polêmico aconteceu no desfile de 1989, quando, depois de uma batalha com a Arquidiocese do Rio, a escola de samba Beija-Flor foi obrigada pela Justiça a cobrir uma enorme escultura de Jesus Cristo esfarrapado, idealizado pelo carnavalesco Joãosinho Trinta.