Título: 'PT abandonou suas propostas e tornou-se governo anti-reformista'
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Nacional, p. A10

No grupo de intelectuais que se uniram 25 anos atrás para ajudar a pensar e a construir o PT, encontrava-se o sociólogo Francisco de Oliveira, professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e um pensadores mais respeitados da esquerda brasileira. Ele participou da histórica reunião no Colégio Sion, na qual o partido foi oficialmente criado, no dia 10 de fevereiro de 1980, e permaneceu filiado até 2003. Em junho daquele ano anunciou publicamente seu desligamento, por não concordar com a política do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Às vésperas de mais um aniversário de fundação, o sociólogo analisa as transformações que PT sofreu no caminho em direção ao poder. Hoje, segundo Oliveira, "a maior máquina partidária do País" tem pouco a ver com sua origem reformista e conduz um governo que ameaça os direitos dos trabalhadores.

As explicações para as mudanças, segundo Oliveira, devem ser buscadas dentro e fora do partido. Ele destaca a globalização e a desregulamentação da economia, que resultaram na eliminação de milhões de postos de trabalho, erodiram as bases do partido e permitiram a ascensão de grupos burocráticos no seu interior.

Nos anos 70, Oliveira trabalhou com o também sociólogo Fernando Henrique Cardoso no Cebrap. No ano passado contribuiu para a fundação do PSOL, a dissidência petista capitaneada pela senadora Heloisa Helena. Aposentado, coordena atualmente o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), da USP. É autor de A Crítica da Razão Dualista - O Ornitorrinco e Os Direitos do Anti-Valor, entre outros estudos .

O que o senhor destacaria como aspectos mais importantes na trajetória de 25 anos do PT?

Duas coisas. A primeira é a contribuição que o partido deu para a queda da ditadura e a construção de um Estado de direito no Brasil. Isso é inegável. Se você olhar a redemocratização brasileira como uma espécie de poliedro, verá que uma das faces dele é petista. A segunda coisa está em oposição à primeira. É a virada do PT ao ascender à chefia do Executivo federal. Ele abandonou suas propostas reformistas e tornou-se anti-reformista.

O PT nasceu reformista?

Sim. A imprensa se equivocou muito nas avaliações do PT, tomando-o como um partido revolucionário. Mas ele nunca foi revolucionário - o que não é um defeito, mas uma qualidade. As reformas são um processo da razão, enquanto a revolução é uma irrupção histórica que ninguém pode programar. Os partidos reformistas é que são importantes. Os revolucionários existem quando as condições para as reformas são impossíveis.

Onde o senhor vê o anti-reformismo do governo do PT?

Nas questões centrais. Ele é anti-reformista do ponto de vista dos direitos. O que se vê todos os dias é o governo atacando direitos que o PT ajudou a consolidar no passado. Sobretudo os direitos do trabalho, que eram a viga central de sustentação do partido. Ele transformou a vocação reformista num simulacro de políticas assistencialistas.

Refere-se às políticas de combate à pobreza?

Elas não têm nenhum efeito sobre a pobreza. Servem apenas como uma espécie de funcionalização da pobreza. O PT abandonou o desafio que a pobreza sempre representou para a esquerda, para o socialismo, para os democratas. As chamadas políticas sociais não são mais do que o conformismo anti-reformista do partido.

O PT sempre lembra que quando assumiu, o risco Brasil estava nas alturas - e que só foi possível vencer a crise com a política econômica que adotou.

De acordo com um conjunto importante de economistas, a crise não tinha as dimensões que o PT alardeou. O crescimento do risco Brasil e a subida do dólar eram previsíveis. João Sayad, que não é nenhum radical, previu que o dólar chegaria a quase US$ 4 até a posse a governo. E foi o que aconteceu. Era um movimento especulativo, que recuaria tão logo o governo tomasse posse e não houvesse reações armadas ou do empresariado.

O PT inclui entre os bons resultados de sua política econômica a queda do chamado risco Brasil.

O risco caiu para todos os países que, numa literatura ruim, são chamados de emergentes. Não foi o PT que pôs as coisas no lugar, mas o ambiente internacional que mudou. O risco da Argentina, que deu um calote na dívida dizendo que só paga 75%, é mais baixo que o do Brasil. O risco cai até na Venezuela, o bode preto do Bush.

Como o partido reformista virou anti-reformista? O que pesou? As questões internas, ligadas ao controle da máquina partidária, ou as questões externas?

As duas coisas. A externa é mais fácil de identificar. Está ligada à globalização, que tornou universal o processo de reprodução do capital e a desregulamentação. No livro A Década dos Mitos, Márcio Pochman mostra que entre 1989 e 1999 houve uma liquidação total de 3 milhões de postos de trabalho no Brasil, dos quais 2 milhões no setor industrial. Houve uma redução quantitativa das categorias mais importantes. O setor bancário hoje emprega um terço das pessoas que empregava há 15 anos. Deu-se, portanto, um paradoxo: o PT chega ao poder quando as forças que o sustentavam já não têm mais força. Isso destruiu a possibilidade da hegemonia, no sentido mais rico da palavra, que é o sentido da direção moral da sociedade.

A globalização detonou as forças de suporte do PT?

Sim. Como já disse, ela foi acompanhada pela desregulamentação nos campos da economia e dos direitos e pelas privatizações, que reduziram a capacidade do Estado de fazer política econômica. Os sindicatos perderam tanta força que a CUT não pôde resistir à reforma da Previdência. Recentemente os bancários tentaram uma greve geral que não deu em nada, ficando restrita às agências do Banco do Brasil e da Caixa.

E as questões internas?

Com o processo de perda qualitativa e quantitativa na estrutura interna, cresceu o outro lado. Emergiu a cara burocrática do PT. Não falo no sentido pejorativo. Refiro-me a uma tendência estudada desde o princípio do século 20 por cientistas políticos, segundo os quais os partidos tendiam a se parecer com organizações burocráticas. Isso quer dizer organizações que calculam, prevêem e ajustam fins e meios. O que chama a atenção é que a burocratização do PT foi muito precoce. O Partido Social-Democrata da Alemanha tem 130 anos. Tornou-se um partido da ordem há menos de 30. O PT passou de reformista a anti-reformista em apenas 25 anos de histó ria.

Sua argumentação chama a atenção para uma coisa que parece contraditória: as forças sindicais que constituíam a base do PT perderam força, mas ao mesmo tempo são os antigos líderes sindicais que o presidente Lula chama para ocupar postos importantes em seu governo. Como vê isso?

Eles fazem parte do que eu já chamei de uma nova classe social, surgida no processo de financeirização da economia - a cara mais ostensiva da globalização e que no Brasil se sustenta sobretudo nos grandes fundos de pensão estatais. É lá que estão encastelados os sindicalistas convidados pelo Lula. Quem é Luiz Gushiken senão alguém que trabalha há 20 anos com fundos de pensão? Ele faz parte de uma nova classe social que não acumula para si, mas tem a chave do cofre. Os fundos de pensão estatais é que definiam as privatizações no Brasil nos tempos de Fernando Henrique. A outra metade dessa laranja são os tucanos, que, no mesmo estudo sobre a nova classe social, chamei de dublês de economistas e banqueiros. Pedro Malan, depois dos três meses de quarentena, foi bater aonde? Ele é vice-presidente executivo do Unibanco. Edmar Bacha foi bater aonde? Pérsio Arida?

A presença dos sindicalistas na direção dos fundos também é contraditória com a tradição do PT?

Quando o fundo de pensão tem de tomar uma decisão sobre determinada empresa, quais critérios sãos usados? Em primeiro lugar vem a rentabilidade, porque o fundo tem de se prover de meios para no futuro pagar suas pensões e aposentadorias. Qual o último item considerado? O emprego. Eles agem nitidamente como capitalistas. E dos mais vorazes.

Os antigos líderes trabalhistas mudaram o modo de pensar?

Claro. Não só porque o interesse molda automaticamente a cabeça, mas também porque as pessoas estão sendo formadas para isso. Observe a carreira de certos membros importantes do governo. O Gushiken, depois que deixou a carreira de bancário, foi se graduar na Fundação Getúlio Vargas. O Berzoini graduou-se onde? Na mesma FGV. O ex-ministro do Planejamento e atual presidente do BNDES era o quê? Professor da FGV. É evidente a formação de uma nova classe - quer você se apóie no critério de interesse, no modo conceber o mundo, ou no critério de exclusividade.

No conjunto de partidos brasileiros, onde situa o PT?

É a maior máquina partidária brasileira.

Maior que o PMDB?

O PMDB não é uma máquina partidária, mas uma federação de caciques. O PT foi fundado na tradição clássica de esquerda, substancialmente diferente daquela dos partidos de centro e de direita. É da tradição da esquerda formar partidos altamente organizados.

Na eleição passada, os petistas perderam força nos grandes centros urbanos e avançaram nos grotões. Como viu isso?

É uma característica do que Habermas chamaria de perda das energias utópicas. O PT nasceu espraiando-se do centro desenvolvido para as demais regiões e hoje o resultado é inverso.

O que deve acontecer com o partido daqui para a frente?

Continuará formando com o PSDB o par que está no centro de gravitação partidária do País. São os mais modernos do ponto de vista da organização da política. A lástima é que se tornaram partidos estatais - o que representa enorme contradição, pois o partido é uma associação livre criada para representar a sociedade e não para ser uma extensão do Estado. O PSDB e o PT funcionam para cumprir funções estatais. A política tende a ser cada vez mais irrelevante.

O anti-reformismo do atual PT abre espaço para um novo partido reformista e apoiado na classe trabalhadora?

O PT surgiu numa conjunção excepcional e irrepetível. Foi formado num caldo denso de luta pela redemocratização, com a aglutinação de forças contra a ditadura. Hoje o partido tem a pretensão de dizer que inventou a luta, mas quem viveu aquela época sabe que, se Ulisses Guimarães não botasse a cara para apanhar e não saísse liderando a marcha que defendia a greve dos metalúrgicos em 1978, tanto a greve como o PT não teriam acontecido. Deve-se levar em conta também a Teologia da Libertação, que criou uma exigência de transparência em certas bases da sociedade e ajudou a formar o PT; e um movimento sindical que não se repete. Hoje, em decorrência da globalização e da desregulamentação, 60% da força de trabalho brasileira é informal. Como se vai fazer um partido de classe sem classe?

E o PSOL, que o senhor também ajudou a fundar?

O PSOL não vai ser um novo PT, nem restaurar o antigo.