Título: Uma escola com o nome de Florestan
Autor: José de Souza Martins
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Nacional, p. A11

Ao repassar a amigos a notícia da inauguração, nestes dias, da Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra -, e o emocionado discurso que na ocasião fez em nome da família uma das filhas do professor, recebi várias reações que me convidam ao comentário. O conjunto das mensagens que recebi convergem para uma indagação: se vivo, estaria o professor Florestan de acordo com o uso de seu nome numa escola cuja proposta pedagógica estará, segundo todas as indicações e segundo tudo que se sabe da ação pedagógica dessa organização, centrada na ideologização do conhecimento? Não sei. Felizmente ou infelizmente, os intelectuais mortos nunca deixam porta-vozes que por eles falem ou que verifiquem a ortodoxia do que em seu nome é dito. Pessoalmente, não estou preocupado com isso. Eu nem saberia dizer se o professor Florestan estaria no Partido dos Trabalhadores se vivesse hoje, levando em conta as posições pessoais e intelectuais firmes que sempre teve e levando em conta que o PT, depois que chegou ao poder, é bem diferente do partido que Florestan conheceu e aceitou. Lembro dele, certa vez, em sua biblioteca, ainda durante a ditadura, tomado de acentuado mal-estar porque fora usado, como dizia, por um partido de esquerda e pelo movimento anti-salazarista, em desacordo com o que era o seu entendimento de determinada questão, já não lembro qual. E afastou-se desse grupo. Florestan tem sido apresentado como "sociólogo militante". Militante ele foi de várias causas, nem sempre porque fosse sociólogo, mas sobretudo porque era consciencioso cidadão. Muitas pessoas fazem a partir daí uma falsa inferência, a de que Florestan teria sido um apóstolo da "sociologia militante", coisa completamente estranha ao conjunto de sua obra. Uma sociologia que não seria sociologia, mas ideologia. Ele foi bastante conservador na maioria de seus textos quanto à postura que adotava em relação à produção do conhecimento científico. Isso nunca o privou da consciência sociológica de que a própria postura científica, mesmo no positivismo, pautada pela neutralidade ética, já pode ser em si mesma uma postura política de compromisso com as transformações sociais. Escreveu isso, aliás, no apogeu de sua carreira como cientista. Não sei o que Florestan diria de uma concepção de conhecimento que concorresse com toda a tradição das Ciências Sociais, em nome do militantismo e da negação da Sociologia como conhecimento científico e crítico, isto é, conhecimento situado, com as condições sociais de sua referência e produção indicadas e seus limites apontados. Penso que ele não se sentiria feliz como patrono de uma orientação em completo desacordo com tudo o que escreveu e ensinou, em desacordo com o rigor científico que sempre defendeu e sempre exigiu de seus alunos. Freqüentemente, o militantismo de Florestan é justificado com base em seus textos de articulista de jornal e livros da fase da militância, escritos em cima de fatos e acontecimentos imediatos, cuja clareza ainda não se punha por inteiro diante dos olhos e do entendimento do sociólogo que ele era. Alguém poderá ver aí uma "ruptura epistemológica" na obra de Florestan, uma renúncia radical à excelente Sociologia que levou a sua marca indelével. Alguém poderia até dizer que, com esses textos, Florestan estaria dizendo "esqueçam o que escrevi antes". É basicamente isso que estão querendo dizer os que fecham os olhos para a obra científica do grande cientista que ele foi, para ver somente o que ele conscientemente produzia no embate político, como contraponto crítico das certezas e formalidades do trabalho acadêmico. Esse "esqueçam o que escrevi" seria aceitável por supostamente ser o contrário de outro suposto e inaceitável "esqueçam o que escrevi". Já aí a neutralidade caduca e se torna uma orientação de conveniência. Que o nome de Florestan Fernandes está sendo usado e manipulado por razões político-ideológicas, eu não duvido. Que o uso político-partidário de seu nome e de sua obra constitua um ato de fidelidade à sua obra, eu duvido e muito. Que Florestan possa estar sendo injustiçado pelo seu próprio partido, é bem provável. Um respeitado e conhecido sociólogo britânico, que conheceu Florestan, conhece sua obra e foi seu amigo, comentou recentemente comigo o quanto lhe parecia injusto que Lula, no discurso de posse, tenha se lembrado de Paulo Freire e de Josué de Castro, e tenha se esquecido completamente de Florestan Fernandes, um dos maiores intelectuais, senão o maior, de seu partido. Essa injustiça não lhe fez o MST. No dia da morte de Florestan, militantes da organização estiveram em seu velório na USP, para colocar uma bandeira do movimento sobre seu caixão. A lembrança de Florestan como patrono da escola agora inaugurada, é uma homenagem compreensível quando parte de uma entidade que teve e tem muitas identificações com a história pessoal de Florestan. Resta saber se lhe será leal, no que se refere à leitura e respeito por sua obra. Afinal, se trata de uma escola que, com as bênçãos e o dinheiro do ministério, deverá se transformar numa escola superior. A sociologia de Florestan tem um clássico das Ciências Sociais que é um livro sobre antropofagia, tema indigesto para quem prega a "sociologia militante" no estreito sentido que estão lhe dando: A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, par de outro livro, considerado por Darcy Ribeiro, o livro das Ciências Sociais brasileiras que ainda será lido daqui a cem anos: A Organização Social dos Tupinambás. Um livro, aliás, que ganhou um prêmio de um expoente da burguesia paulista: Fábio Prado. Acreditarei que o nome de Florestan na escola recém-inaugurada é de fato uma homenagem, justa aliás, quando seus professores e alunos lerem, de cabo a rabo, esse livro e lerem e assimilarem seu livro monumental Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica ou mesmo A Integração do Negro na Sociedade de Classes ou até A Revolução Burguesa no Brasil. Deixar de lado esses escritos do grande mestre, e outros mais, será realizar o seu funeral pela segunda vez. E aí, então, as coisas ficarão claras, como começaram a ficar na mencionada omissão do discurso do Presidente Luiz Inácio. *José de Souza Martins é sociólogo e professor da USP