Título: Doutores da experiência
Autor: Adriana Dias Lopes
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Vida &, p. A12
Eles assistiram à chegada do antibiótico e do aparelho de raio X. Viram também a boa conversa ser substituída por inúmeros exames para se chegar a um diagnóstico. Eles já passaram dos 90 anos - ou estão quase lá -, mas, acredite, são médicos que ainda hoje seguem atuantes na profissão. São os doutores da experiência. Para ver o surgimento da penicilina, o primeiro antibiótico, no início dos anos 1940, o médico poderia estar agora um pouco adiante da faixa dos 80 anos, aposentado, descansando de uma vida inteira de dedicação à saúde. Mas não. Contamos aqui a história de alguns deles: Antonio Villela de Mendonça Uchôa, de 90 anos, do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas (HC), o clínico João Pedro Matta, também de 90 anos, e o ginecologista Pedro Camasmie, de 91, do Hospital Sírio Libanês.
Apenas um deles fugiu à regra na escolha. É o infectologista Jair Xavier Guimarães, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem "só" 88 anos. A razão é louvável. Guimarães é portador do registro profissional (CRM) de número 3, hoje o mais antigo do Estado de São Paulo em atividade. "Os donos dos CRMs 1 e 2, assim como todos os meus colegas da turma da faculdade, já receberam o chamado", diz Guimarães, referindo-se à morte dos companheiros.
VÍCIO DE HOSPITAL
Ao contrário do que ocorre nas academias de Letras, quando o médico morre seu CRM não é transferido para outro colega. Guimarães tem a carteira de número 3 por conta de circunstâncias. Em 1954, no ano de fundação do Conselho Regional de Medicina, ele tinha a função de secretário-geral na instituição. O cargo ficava atrás apenas do presidente e do vice-presidente do Cremesp, respectivamente os números 1 e 2.
Integrou a turma pioneira da Escola Paulista de Medicina, de 1938. "Eram tempos em que o médico atendia o paciente olhando no olho dele", diz. O assunto inflama o infectologista: "Os profissionais não podem trocar o ato médico pela tecnologia, como muitos têm feito. Ato médico é a observação clínica, é a investigação da vida do paciente. Seria muito mais econômico para a saúde pública se isso voltasse a ocorrer. Muitos diagnósticos podem ser descobertos com uma boa conversa."
Já o que lhe enche de orgulho é o contato intenso com alunos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Semanalmente, ele é chamado para discutir casos médicos com estudantes. "O que mais me preocupa é passar para a nova geração a importância da medicina humanizada."
Entre as histórias que mais envolvem os alunos está a da chegada da penicilina ao Brasil, relatada minuciosamente. "Sou da era pré-antibiótica. Recebi os primeiros lotes de penicilina em 1941 e eles ainda vinham com instruções de uso do Ministério da Saúde da Inglaterra. Antes disso, o tratamento para doenças infecciosas era uma combinação de remédios para a febre, boa alimentação e muito repouso. Para casos de meningite, não havia jeito, eram fatais. A penicilina foi o maior milagre da medicina."
Dos quatro, o médico mais velho é o ginecologista Pedro Camasmie, "91 anos e meio", como ele insiste em repetir. Diariamente, ele bate ponto no Hospital Sírio Libanês, onde passa as manhãs. "É como se minhas pernas não soubessem ir a outro lugar", diz. "Estou viciado."
Camasmie participou da construção do Sírio Libanês. "Minha família era da Sociedade Beneficente de Senhoras, que levantou esse hospital", conta, orgulhoso.
A sociedade, formada em 1921 pela primeira geração de sírios e libaneses de São Paulo, tinha como objetivo angariar fundos para erguer o hospital. "Na década de 30, já estava prontinho para começar a funcionar, mas o prédio foi desapropriado por Ademar de Barros para abrigar uma escola de cadetes", lembra ele. "Até aí, tudo bem. A tristeza foi quando eles saíram, uma década depois. Estava tudo depenado." O Sírio passou a funcionar oficialmente em 1965, com 35 leitos. Hoje, tem cem apartamentos.
PLUMA E CAMISINHA
A história da vida profissional do clínico João Pedro Matta não tem tanta exatidão de datas, mas sobram excentricidades. "No meu auge, na década de 50, fui médico 'oficial' do Teatro Maria Della Costa e da Casa do Ator ", lembra. Não é de bom tom dar nomes de pacientes, naquela época havia promiscuidade nesse meio."
Desse tempo, ele herdou o gosto tanto pelo tema médico (se dedicou à ginecologia), quanto pela arte. Quando não está clinicando, passa o tempo catalogando uma coleção exótica que conquistou nos 60 anos de profissão. A estranha mistura de objetos que ocupa todos os cômodos da sua casa conta, por exemplo, com plumas e máscaras de vedetes, camisinhas e folhetos de campanhas de combate às drogas e à aids das secretarias de Saúde.
"Meu endereço está cadastrado nos órgãos de governo para receber as propagandas", diz. "Já que ainda não tive tempo para aprender a mexer no computador, esse material é muito importante para divulgar aos meus pacientes, com alegria e leveza."
Hoje, 90% de seus pacientes são de mais de 30 anos atrás, atendidos em sua casa, no consultório ou em hospitais. Para visitá-los, até um ano atrás, Matta dirigia seu fusca amarelo, ainda bem conservado na garagem. "Meus sobrinhos não me deixam mais dirigir, mas não vejo problemas. Aproveito que não estou na direção para distribuir aos passageiros do ônibus meu cartão de visitas. Quero aumentar a clientela."
O dia-a-dia do radiologista Antonio Villela de Mendonça Uchôa, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é capaz de deixar muito residente impressionado. "A única coisa que deixei de fazer por conta da idade foi ser o responsável por cirurgias. O avental de chumbo é muito pesado para mim." O comando oral continua, no entanto. "Acompanho todas as operações dos meus pacientes, orientando os médicos da equipe."
Batalhador, trocou a carreira sólida de médico em Araçatuba, interior de São Paulo, para "educar os filhos em escolas melhores" na capital. Chegou na faixa dos 40 anos para trabalhar de graça do Hospital das Clínicas, onde participou da formação do primeiro grupo de radiologia vascular do hospital. "Era um dos únicos centros equipados. Tinha de levar equipamentos comigo, no carro, quando ia visitar pacientes em outros hospitais."
Uchôa ainda dá plantões semanais no Hospital do Servidor Público Municipal, cumpre 10 horas de trabalho semanais no HC e ainda pratica caminhadas diárias de 5 quilômetros. Se existe um segredo para tamanha energia? "O bom médico esquece que cansa", responde ele.