Título: 'Catolicismo tornou-se sinônimo de obscurantismo'
Autor: Marco Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Vida &, p. A14

Formado em teologia e psicologia pela Universidade de Salamanca, na Espanha, José Maria Vigil tem um longo currículo de atividades ligadas à América Latina. Atualmente divide seu tempo entre o Panamá, onde dirige a publicação Agenda Latinoamericana, e Madri, onde escreve com freqüência para o jornal El País. A seguir uma síntese de sua entrevista ao Estado. Por que a Europa rechaça a Igreja com tanta veemência?

Em primeiro lugar porque a Igreja continua sendo inimiga da modernidade. Esta é uma realidade que dura séculos, mas que se evidenciou nesses 26 anos de pontificado de João Paulo II. Com João XXIII e o concílio Vaticano II chegou-se a um momento de encontro e diálogo que foi interrompido e revertido.

O compromisso primordial da Igreja ainda é com os mais pobres?

Não vejo assim. A obsessão anticomunista de Karol Wojtyla tornou a Igreja incapaz de reconhecer as aspirações dos movimentos populares, principalmente latino-americanos. Os militantes sentem que a Igreja os abandonou e se alinhou à direita internacional. Em termos globais, o cristianismo ocidental se consolida como uma religião burguesa, conivente com o capitalismo e o neoliberalismo. Para ela, o capitalismo é bom em essência, ao contrário do socialismo, que é intrinsecamente mau.

Qual é o papel da mulher européia na Igreja?

Na doutrina oficial, a mulher é endeusada com louvores poéticos, mas continua discriminada. Uma mulher moderna, com dignidade e consciência de gênero, não pode ser membro da Igreja católica sem alguma esquizofrenia interior. Na Europa, mães modernas já não educam os filhos na fé cristã - quebrou-se a principal linha de transmissão social da fé.

A Igreja pode sobreviver sem maior inclusão da mulher?

A deserção da mulher vai custar à Igreja a perda da próxima geração. A proibição do acesso da mulher (e de parte dos casados) ao sacerdócio faz diminuir e envelhecer os efetivos pastorais. No Brasil, 80% das celebrações dominicais acontecem sem a presença de sacerdotes. Enquanto um padre luta para atender fiéis nos imensos bairros periféricos latinos - metade dos cristãos do mundo -, dezenas de pastores evangélicos conquistam as massas com seu proselitismo agressivo.

Em seus artigos e palestras o senhor fala da falta de democracia na estrutura da Igreja...

João Paulo II considera um desígnio divino ter sido eleito o primeiro papa eslavo da história. Por isso acha que tem uma missão especial a cumprir. Como líder do grupo derrotado no Concílio Vaticano II, era lógico que, uma vez eleito, quisesse reconduzir a Igreja à "grande disciplina", da qual fala em seus livros o jesuíta brasileiro João Batista Libânio. Centralizou poderes; subestimou a colegialidade episcopal recuperada pelo Vaticano II; proclamou um Código de Direito Canônico sem consenso de concílio ou sínodo; tomou decisões contrárias ao "sentir" dos bispos, como a elevação da Opus Dei à categoria de diocese universal. Um papa não pode impor uma teologia particular. O pensamento teológico na Igreja é plural. São mais de 500 os teólogos e teólogas silenciados, punidos ou perseguidos. No mais, a Igreja é, sabidamente, a última monarquia absolutista do Ocidente.

Mas este é um papa peregrino, acolhido por multidões aonde quer que vá...

Que essas multidões não sejam motivo de engano. Milhões de pessoas deixaram a Igreja nos últimos 25 anos. O ambiente no interior da Igreja se deteriorou. É publicamente reconhecido o clima de medo, suspeita, falta de liberdade, delação e exclusão dos que não acatam a ideologia dominante. Só é dado poder de comando a quem renuncia a pensar livremente. Para pessoas cultas e com critério, catolicismo tornou-se sinônimo de obscurantismo. Nas sociedades européias avançadas, a animosidade da opinião pública e dos meios de comunicação em relação à Igreja é alarmante.

Pode-se esperar alguma surpresa na eleição do próximo papa?

Não enquanto estiver em vigor o atual mecanismo de eleição. Estamos de novo, como há 26 anos, a ponto de jogar o destino da Igreja nas mãos do acaso, sem a participação do Povo de Deus. Pode acontecer o pior: mais 26 anos de governo autoritário e excludente. Um novo período em que presenciaremos a indiferença da juventude e veremos mais e mais fiéis abandonarem a Igreja. Apesar de tudo, é preciso manter a esperança. Porque a esperança não tem como objeto "essa Igreja que passa", mas a misteriosa vontade de Deus sobre a humanidade.