Título: Por que a Europa rechaça a Igreja?
Autor: Marco Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Vida &, p. A14

Na semana em que mais se debateu o futuro da Igreja Católica, com a internação às pressas do papa João Paulo II, em Roma, por causa de uma infecção aguda nas vias respiratórias, uma coisa é certa: o sucessor do pontífice herdará uma Igreja em meio a uma das piores crises de sua história. Na Europa, a rejeição à instituição chega ao ponto de a União Européia, que em breve vota uma Constituição para os 25 países que a integram, recusar-se a incluir no texto qualquer referência a suas origens cristãs. Na Espanha, antes um país de forte tradição católica, uma pesquisa revela que a Igreja (junto com a televisão) tornou-se a instituição em que o povo menos confia. Para alguns teólogos, com a eleição do substituto de Carol Wojtyla estará em jogo a sobrevivência da mais antiga instituição humana.

A imprensa européia, com base em fontes do Vaticano, fala abertamente de possíveis candidatos à sucessão papal, entre os quais aparece com freqüência o cardeal de São Paulo, d. Cláudio Hummes. Mas sempre que tocam no assunto, os jornais lembram o rechaço de católicos progressistas ao próprio sistema de eleição.

João Paulo II não apenas nomeou a dedo todos os cardeais que escolherão seu sucessor, como estabeleceu cada detalhe do procedimento eleitoral - da escolha do lugar onde os votantes serão mantidos até o local onde votarão: a célebre Capela Sistina. Os mesmos católicos condenam o método de eleição - através de um conclave -, como um sistema gerontocrático, baseado na cooptação, impossível de ser compreendido na cultura atual. "É preciso que o conclave se democratize e se amplie e que eleja o papa de forma representativa", diz o acadêmico José Catalán Deus, autor do livro Quem Será o Próximo Papa. "Afinal, está em questão não a escolha de um administrador, mas do representante na terra do Deus cristão."

Na Espanha, as discrepâncias entre Igreja e Estado beiram a confrontação. De um lado, padres e bispos atacam a plataforma com a qual se elegeu o socialista José Luis Dominguez Zapatero, que inclui questões polêmicas como novas leis sobre aborto, casamento homossexual e ensino de religião nas escolas. Disposta a resistir ao chamado "relativismo moral europeu", a Igreja pôs em campo suas vozes mais eloqüentes, orientadas para combater a onda de laicismo que ameaça destruir valores básicos da sociedade.

O cardeal Joseph Ratzinger, homem forte do Vaticano, fala com freqüência da "agressividade ideológica do laicismo que varre da esfera pública os sentimentos religiosos". Do outro lado, o presidente Rodriguez Zapatero diz que seu governo está apenas cumprindo um programa eleitoral apoiado pelos espanhóis: "Os que se opõem talvez precisem evoluir para alcançar o tempo social em que vivemos. A fé não se estabelece por meio de leis, é algo íntimo na consciência de cada cidadão", afirma. Num gesto tomado como provocação pela Igreja, Zapatero compareceu recentemente à estréia de Mar Adentro, sobre a eutanásia e um dos candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

CÓDIGO MORAL

Do próprio rebanho católico acaba de sair um documento solidário ao governo espanhol. Assinado por 35 teólogos de universidades católicas da Europa, o texto condena a instituição por sua obsessão em impor o próprio código moral, como se detivesse o monopólio da ética. "O processo de secularização da sociedade é um fenômeno positivo que traz enormes possibilidades para a vivência da fé, sem necessidade de ajuda do Estado (a Igreja espanhola recebe subvenções de 150 milhões por ano do governo)", alerta a declaração. "Esses privilégios só contribuíram para distanciar as religiões do testemunho de pobreza e da opção pelos pobres."

Benjamin Forcano, padre e teólogo, vê nas atuais disputas o desejo de uma parte da Igreja européia de manter a hegemonia que desfrutou a partir do século 4.º, quando Constantino converteu o catolicismo em religião oficial do império romano. "A hegemonia prolongou-se até o século 20 com a aventura do concílio Vaticano II, que optou pelo retorno ao Evangelho, colocou o Povo de Deus em primeiro plano e a hierarquia da Igreja a seu serviço", lembra ele.

Para o teólogo espanhol José Maria Vigil (veja entrevista abaixo), a crise atual não é só a mais grave, mas a mais profunda.

"Não é o cristianismo que está em crise, mas a própria religião. As grandes religiões não são eternas, formaram-se na idade agrária. O cristianismo tem suas raízes no sistema agrário de crenças, um sistema sem lugar na sociedade pós-industrial. Se as religiões em geral - todas elas agrárias em suas origens e em seu DNA - não se transformarem geneticamente, tendem a desaparecer", diz ele. E completa: "Muitas homilias de padres europeus são discursos agrários dirigidos a camponeses que já não o são."

Há duas décadas trabalhando na América Latina, Vigil vê sinais claros da chegada ao continente do mesmo processo de secularização que afeta a Europa. "É hora de a Igreja latino-americana voltar sua atenção para o que acontece no Velho Mundo. Não é preciso ser profeta para assegurar que a mudança virá a toda velocidade e temo que encontrará a igreja latina dormindo."