Título: Irã poderá sentir o efeito Iraque
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Internacional, p. A18

Masoumeh Ebtekar é vice-presidente da República Islâmica do Irã e diretora do departamento de meio ambiente. Ebtekar é também presidente da ONG, Rede ONGs Femininas do Irã e faz tempo que ficou famosa como a porta-voz dos estudantes que ocuparam a Embaixada dos Estados Unidos e mantiveram diplomatas americanos reféns em 1979. Ela concedeu a entrevista em Davos, Suíça, na semana passada, da qual publicamos os principais trechos a seguir. Na qualidade de uma democracia comandada por xiitas sob a influência do aiatolá Ali al-Sistani, o Iraque tomará decisões sobre o mesmo conjunto de questões - direitos humanos, herança, divórcio, o papel do governo clerical - com as quais a senhora vem lidando no Irã. Isso não a afetará?

As decisões do aiatolá Sistani são bem compreendidas pelos reformistas do Irã. Há muito debate sobre as idéias dele, especialmente sobre a forma que ele está promovendo a tolerância.

O novo papel dos xiitas no Iraque poderá ajudar a estimular a democracia no Irã?

Poderá. Por que não? Quando vemos um exemplo diferente de forma de governar - mas com uma mentalidade semelhante, que é também xiita - isso nos incentivará a ver que alternativas para o que temos agora também podem promover a democracia islâmica.

Abdolkarim Soroush - o estudioso iraniano chamado de "Martin Luther do islamismo xiita" (ler seu artigo abaixo) - tem argumentado que o novo poder xiita no Iraque renovará o predomínio da escola teológica da cidade de Najaf no Iraque, que rejeita a teocracia, sobre a de Qom no Irã, que apóia o governo sob uma guarda religiosa. A senhora vê as coisas assim?

Isso é uma cogitação. No presente momento, a autoridade incontestada da jurisprudência islâmica xiita está em Qom. Sem dúvida. Será que a escola de Najaf vai ficar mais influente agora? Você não pode dizer que isso não seja possível algum dia.

O ponto importante é que os progressos xiitas no Iraque irão ajudar a diversificar ainda mais os campos de estudo nos seminários e abri-los para novas realidades do mundo de hoje.

Por exemplo, muitos estudiosos das escolas teológicas estão agora aprendendo línguas estrangeiras, incluindo o inglês. Eles estão se interessando, pela primeira vez, em ciências empíricas, proporcionando uma interpretação jurídica que permitem que essas sejam ensinadas.

Esperamos que esta tendência não apenas continue, mas que se acelere. As escolas de teologia têm de responder a novos desafios da nossa sociedade, especialmente às expectativas da nova geração.

Foi o imã Khomeini, uma autoridade em assuntos religiosos que, em certo sentido, começou nesse caminho. Ele foi muito corajoso assumindo posições sobre questões controvertidas, tais como o papel positivo da música e a emancipação das mulheres.

Ele deixou claro que queria ver as mulheres assumirem um papel atuante na política e em assuntos sociais - na maneira do islamismo, não fora dos princípios islâmicos.

Isso abriu uma nova visão para uma abordagem mais moderna à qual precisamos dar continuidade.

No Iraque, houve muitos mulheres candidatas a cargos públicos na chapa xiita.

Sim, é verdade. Isto deixará claro que os círculos religiosos hoje - no Irã e no Iraque - têm uma interpretação bem definida dos direitos da mulher. Neste sentido, o Irã tem estado na vanguarda em questões que estão na fronteira entre a jurisprudência islâmica e a modernização, estabelecendo um exemplo para o restante do mundo islâmico.

Veja o papel das mulheres na política. Quando conheci a ex-presidente da Indonésia, Megawati Sukarnoputri, ela me contou que, quando foi indicada para vice-presidente antes de chegar à presidência, os integristas islâmicos e seus seguidores irracionais se opuseram à candidatura dela porque, disseram, isso era "contrário aos princípios islâmicos".

Ela e seu partido disseram: "Veja o Irã. É um país estritamente religioso. Segue a sharia e tem um Conselho de Guardiães. Nada contrário ao islamismo costuma acontecer lá. No entanto, tem uma mulher vice-presidente." E ela me disse ter sido esse o motivo pelo qual eles aceitaram seu papel político.

A senhora pertence a um governo reformista eleito freqüentemente em desavença com o Conselho dos Guardiães, que não é eleito. Embora o aiatolá Sistani diga que os valores islâmicos devem servir de base para o governo no Iraque, os aiatolás não devem ter nenhum papel no governo. Como isso afeta o Irã?

Precisamos ver como o sistema evolui no Iraque. Estabelecer um sistema de democracia islâmica é um processo complexo. Nós nos reunimos para redigir uma Constituição há 28 anos com a mentalidade que tínhamos na época. Agora temos uma longa experiência em pôr essa Constituição em prática.

Em qualquer governo do mundo, a legislação promulgada por um Parlamento deve estar em conformidade com a Constituição. Isso é natural. Numa democracia religiosa, a sharia é também considerada Constituição. Assim, o fato haver um Conselho de Guardiães como temos no Irã não é estranho nem incongruente com outros sistemas políticos. O problema é como a autoridade dos guardiães é exercida vis a vis à soberania popular.

Se acontece uma situação na qual o Parlamento assume uma posição contrária ao Conselho dos Guardiães - que foi o que aconteceu nas eleições parlamentares (quando o Conselho se recusou a permitir que candidatos reformistas concorressem) - então de quem é a palavra final? Qual será o desfecho? Esta é a questão delicada que enfrentamos.