Título: Domingo no Iraque: o comovente dia da eleição
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/02/2005, Internacional, p. A18

Passei quase todo o domingo de 30 de janeiro preso à televisão, acompanhando as informações, em todos os canais internacionais, sobre as eleições no Iraque. Fazia tempo que um acontecimento político não me comovia tanto. Na verdade, "contra toda esperança", esperava o que aconteceu. Não porque seja dotado do dom da vidência, e sim instruído pela lembrança de minha breve visita a este país, no fim de junho e começo de julho de 2003, quando, em todos os lugares que visitei, notei uma sensação de alívio generalizado e uma grande esperança com a queda da ditadura do Partido Baath e de Saddam Hussein. As ações terroristas da Al-Qaeda, do Ansar al-Islan, das brigadas enviadas pelos clérigos ultraconservadores do Irã, as de Abu Musab al-Zarqawi e dos grupos sobreviventes do Baath então apenas começavam e era difícil imaginar que cresceriam até alcançar as proporções apocalípticas que atingiram. Isto e, sobretudo, a formidável campanha internacional dos meios europeus embebidos no ódio aos EUA chegaram a persuadir uma porcentagem importante da opinião pública de que a intervenção militar no Iraque era um absoluto fracasso e, ademais, uma operação contraproducente que, em vez de desembocar numa democratização do país, incendiaria todo o Oriente Médio, deixando-o à mercê dos fanáticos fundamentalistas antiocidentais. O Iraque seria um novo Vietnã que, pela segunda vez, faria o arrogante colosso americano sentir o gosto da derrota! Toda a Europa do ressentimento e da nostalgia da evaporada revolução saiu às ruas, a festejar este presente dos deuses.

Num belo artigo intitulado "A prudência política e a coragem dos iraquianos" em El País, de 30/1/05 (também publicado pelo Estado), Michael Ignatieff se perguntava no dia das eleições: "Por que quase ninguém sente sequer um tremor de indignação quando vê pesquisadores alvejados numa rua de Bagdá? Por que não há nem o menor sinal de aplauso na imprensa pelos mais de 6 mil iraquianos que, arriscando suas vidas, se apresentam como candidatos a um cargo público?" Por uma razão muito simples: porque estas eleições não eram sérias, e sim uma farsa dos ocupantes, que o povo iraquiano, identificado com a "resistência" - a palavra é um astuto embuste, para dar uma aura de dignidade aos terroristas -, iria boicotar, mostrando assim ao mundo sua rejeição daquela intervenção colonialista do imperialismo anglo-saxão. A correção política assim determinava e só faltava os fatos confirmarem a teoria.

O maltratado, dizimado, destroçado povo iraquiano, sobrevivente de quatro décadas de uma das mais enlouquecidas satrapias que a história conhece e de dois anos de um terrorismo cego e demencial contra a população civil, se encarregou de pôr as coisas em seu lugar. Como? Indo votar, apesar das ameaças dos fundamentalistas de que os recintos eleitorais e os votantes poderiam ser alvo dos motoristas suicidas cobertos de explosivos e de que cada eleitor, pelo simples fato de depositar seu voto numa urna, seria objeto de perseguição e degola, assim como toda a família.

Eles não se intimidaram. Lá estavam, em Bagdá, em Basra, em Najaf, em Faluja, em todo o Curdistão e até no triângulo sunita. As imagens eram empolgantes. Famílias inteiras fazendo filas de muitas horas às portas dos centros de votação, numa atmosfera festiva, e entre elas as mulheres, ululando ou fazendo o V da vitória diante das câmeras, com sorrisos de orelha a orelha. E homens e mulheres respondendo sempre da mesma maneira quando lhes perguntavam por que tinham ido votar: "Porque queremos paz", "Porque queremos liberdade."

Os comandos de assassinos suicidas mataram 50 eleitores, é certo. Mas cerca de 8 milhões de iraquianos, apostando a vida, compareceram para legitimar com seus votos as primeiras eleições livres da história do Iraque. Quase 60% dos inscritos, uma participação cívica extraordinária até mesmo se comparada com as democracias mais avançadas, algo que consolida de modo retumbante as eleições iraquianas.

E também mostra a falácia e a mesquinhez daqueles argumentos dos culturalistas segundo os quais é abusivo e prepotente "impor" uma democracia à ocidental a uma sociedade cuja cultura a rejeita intrinsecamente porque lesiona práticas, usos e crenças arraigadas às quais aquela não poderia renunciar sem perder "identidade". E estes racistas se consideram progressistas! Nem sequer percebem que sua noção de identidade coletiva é um campo de concentração que condena um povo inteiro a não progredir jamais, a eternizar-se no obscurantismo e na barbárie.

Depois do que aconteceu nestas eleições, passará pela cabeça do governo espanhol a suspeita de que talvez tenha sido prematuro retirar as tropas do Iraque de modo tão precipitado? Que talvez tenha sido imprudente exortar os outros países que faziam parte da coalizão liderada pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha a uma deserção parecida?

Naturalmente que não. Porque um exército de escrevedores progressistas já estremece os computadores para lhe tranqüilizar a consciência demonstrando, em judiciosas argumentações desconstrutivistas, que estas eleições não são de modo algum o que parecem - o início de um processo de democratização em marcha no Iraque, como ocorreu no Afeganistão - e sim um acidente, um pequeno tropeço do povo iraquiano, que, indevidamente manipulado, caiu numa armadilha, da qual logo sairá, descobrindo o que verdadeiramente é correto e lhe convém. E que, de qualquer modo, as bombas e os assassinatos da "resistência" logo provarão que nada melhorou, que tudo está piorando. Nunca foi tão acertada como em nossos dias a frase de Arthur Koestler segundo a qual o intelectual é capaz de demonstrar tudo aquilo em que acredita e de acreditar em tudo aquilo que pode demonstrar.

Não importando qual seja o resultado das eleições iraquianas, estas já foram, pela participação em massa dos eleitores, um êxito de grandes conseqüências para todo o Oriente Médio. Elas provam que é perfeitamente possível que um país de imensa maioria árabe e muçulmana opte por um sistema democrático, onde haja alternância no poder, se respeite o direito de crítica e uma descentralização vertical e horizontal dos poderes garanta às minorias étnicas e religiosas uma ampla autonomia. Pela primeira vez em sua história, os xiitas, 60% da população, deixarão de ser marginalizados e explorados pela minoria sunita, e os curdos (quase 20%) terão asseguradas sua língua e sua cultura dentro da flexível unidade nacional.

É claro que ainda há muito a fazer e, sem a menor dúvida, o terrorismo fanático e cavernícola ainda provocará muitas mortes. Mas estas eleições são um marco que talvez contribua para atenuar o ceticismo e a hostilidade de países como França e Espanha e os induza a colaborar com o povo iraquiano em seu empenho - que se fez patente nestes comícios - por emancipar-se do terror e da opressão e conquistar a modernidade.

Durante todo aquele domingo, enquanto via as imagens do Iraque na pequena tela, pensava no professor Bassam Y. Rashid e sua família. Professor de espanhol na Universidade de Bagdá, doutorado pela Universidade de Granada, o professor Bassam foi meu intérprete e companheiro inseparável nos 12 dias que passei no Iraque.

A palavra "cavalheiro" parecia inventada para este bagdali muçulmano sunita, de urbanas maneiras e singulares gostos literários, generoso e tolerante, a quem tantos anos de horror e ditadura não haviam quebrantado o espírito nem corroído a convicção de que o Iraque seria, num futuro próximo - "como a Espanha", dizia ele -, uma democracia moderna e próspera.

Estou seguro de que, numa destas grandes filas de eleitores, estavam ele e sua maravilhosa mulher, cuja hospitalidade transformava sua casinha modesta num palácio. E sem dúvida levaram com eles, a fim de que sua memória gravasse para sempre este dia histórico, o pequeno Ahmed, seu filho, que me assegurava que o paraíso tinha a aparência de Granada. Como o senhor bem sabe, professor Bassam, há ficções que se tornam realidades. Com a coragem que seus compatriotas demonstraram neste domingo, o Iraque será uma delas, o senhor verá. E festejaremos comendo o cordeiro que o senhor conhece, o Cusi, no restaurante The White Palace!