Título: O demérito universitário
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Se há um ponto de consenso entre as universidades de alto nível em qualquer lugar do mundo, é que o mérito deveria ser o único critério de conhecimento. Um pensador da esquerda democrática, Norberto Bobbio, é preciso a esse respeito: "Na escola, que não pode deixar de ter uma finalidade seletiva, o critério de mérito é exclusivo." Alia-se a ele um outro pilar do ensino superior: a liberdade de ensinar e conhecer. Quando restrições começam a ser feitas, concernentes ao mérito e à liberdade, a própria função da universidade é questionada.

O projeto de reforma universitária proposto pelo Ministério da Educação (MEC) é cheio de "truques", que visam a enfraquecer os pilares de uma universidade livre. Quando se refere à "gestão democrática" das atividades acadêmicas, ele procura politizar decisões que deveriam ser fruto do avanço do conhecimento, do progresso na formação dos estudantes, traduzindo-se em maiores bens para a sociedade em geral em termos científicos, tecnológicos, artísticos e filosóficos. Uma proposta como essa tem ainda o benefício adicional de captar o apoio dos sindicatos e corporações universitárias, cuja preocupação principal se reduz à eleição direta para reitor e para os demais diretores de institutos e faculdades. Observe-se, a esse respeito, que não há uma única universidade qualificada no mundo que considere a "gestão democrática" e a "eleição direta" para reitor critérios universitários e de conhecimento. As melhores utilizam um mecanismo chamado de "comitês de busca", constituído por pessoas renomadas, que escolhem seletivamente o representante máximo da instituição. Ademais, no caso brasileiro, a melhor universidade, a USP, é, segundo os critérios do MEC e das associações docentes e de funcionários, a menos "democrática". Talvez tenhamos aqui uma chave do seu sucesso.

Outra pérola do projeto consiste em subordinar a criação de cursos e universidades, e até mesmo o conhecimento, a "necessidades sociais". Imaginem, então, um funcionário membro do partido (de escolha do ministro, pois ocupa um cargo comissionado) decidindo, com sindicatos, a função social da pesquisa, do ensino e da extensão. A pesquisa, e esta é sua condição básica, deve-se fazer livremente e independentemente, sem nenhuma condicionante senão a seriedade e a qualidade do trabalho. Trata-se de um critério que não admite nenhuma derrogação, tendo no professor e no pesquisador os seus únicos árbitros. Se o governo tem interesse numa área de pesquisa determinada, o que é legítimo, ele dispõe das políticas das agências de fomento, como Capes, CNPq, Finep e fundos setoriais, que cumprem essa função. Confundir esses dois níveis implica uma interferência que pode ganhar rapidamente um contorno ideológico. As pesquisas - assim como a criação de cursos e universidades - deveriam, então, aguardar o "nihil obstat" dos funcionários/militantes para poderem ser implementadas.

O projeto aproveita-se também da penúria das instituições federais de ensino superior (Ifes) para propor um aumento significativo de recursos, sem nenhuma contrapartida do ponto de vista do mérito e do desempenho. A folha dos inativos sairia das universidades públicas, devendo o Tesouro assumir esse ônus, sem que seja especificado como. Ademais, as universidades teriam assegurados 75% da receita constitucionalmente vinculada à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, além de terem a segurança de que os recursos anuais não poderiam ser inferiores aos do ano anterior. Consolida-se, assim, o status quo de cada universidade, independentemente do mérito e de qualquer avaliação séria. E esse status quo é freqüentemente político, e não científico. Se é bem verdade que as universidades públicas estão dentre as melhores do Brasil, não é menos verdadeiro que algumas delas se encontram dentre as piores. Como diferenciá-las do ponto de vista dos recursos? Onde se encontra, para conhecimento público, o ranking das universidades brasileiras, segundo critérios de mérito? O governo atual, aliás, eliminou o Provão, que poderia constituir, aliado a outros, um desses critérios. A armadilha dessa medida consiste em que os reitores das Ifes tendem, por falta de recursos, a aprovar o projeto, pois são seus beneficiários.

O projeto tem, ademais, um nítido viés antiprivatista, como se as universidades públicas fossem do "bem" e as privadas, do "mal". Ao mesmo tempo que estipula uma série de medidas de controle das instituições privadas, cala sobre o desempenho sofrível de boa parte das instituições públicas. Por exemplo, o artigo 64, @ 1.º, estipula que as universidades e os centros universitários privados devem ter a sua autorização de funcionamento "renovada periodicamente, mediante avaliação de qualidade do ensino e da mantença, em processos de credenciamento e recredenciamento". As Ifes prescindem de tal mecanismo de "autorização"? O viés antiprivatista chega a ter a conotação própria de um nacionalismo estreito, presente, aliás, em outras iniciativas do atual governo. Assim, o projeto assegura que pelo menos 70% do capital total e do capital votante das universidades privadas deve pertencer a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Ou seja, se Harvard ou Stanford pretendessem estabelecer-se no País, estariam impedidas! Para os funcionários/militantes, o Brasil pode prescindir delas!