Título: Cocaína e política
Autor: Cesar Maia
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

"Efeito balão" é a expressão utilizada pela polícia que combate o narcotráfico internacional para explicar o deslocamento da produção de um lugar para outro devido à repressão ao plantio ilegal da coca. A Colômbia, cuja produção de cocaína alcançava 580 toneladas por ano, vem conseguindo, no governo Uribe, aplicar fortes golpes tanto no plantio quanto no próprio narcotráfico e na narcoguerrilha. Com isso a área de plantio e a oferta de cocaína vêm diminuindo, enquanto ocorre um nítido aumento da área plantada no Peru e na Bolívia. Como forma de sustentar a lucratividade, os narcotraficantes apostam em duas direções. A primeira é criar e ampliar as novas áreas de venda e o Brasil é seu alvo principal. A cada dia, a proporção que corresponde à passagem dos carregamentos para outros países, especialmente europeus, é menor, ao mesmo tempo que cresce, mais que proporcionalmente, a parte que entra no Brasil como mercado consumidor final. A segunda é a pesquisa na engenharia genética com vista à maior produtividade, maior resistência aos herbicidas e maior concentração de substância alucinógena. Numa recente ação da polícia antinarcóticos colombiana, foram identificados em Sierra Nevada, a 5.600 metros de altitude, cultivos em que a proporção de cocaína sobe de 25% para mais de 90%. No Peru, entre 1995 e 2000, a área plantada de coca passou de 115 mil para menos de 35 mil hectares. Em 2003, já havia subido para 65 mil hectares, quase o dobro. A pasta base de cocaína - PBC -, mesmo a produzida no Peru, era geralmente levada para refino na Colômbia. Com a ação bem-sucedida do governo Uribe, ela se desloca substancialmente para laboratórios na fronteira com o Brasil, para onde é exportada. As informações da DEA - o Departamento Antinarcóticos dos Estados Unidos - indicam que por esse caminho estariam sendo enviadas ao Brasil 30 toneladas por ano para consumo interno. Estes dados coincidem com os da Polícia Nacional do Peru. As principais rotas para o Brasil estão nas regiões de Ucayali e dos Rios Apurimac e Ene. Carregamentos passam pela região de Marechal Taumaturgo e pela fronteira entre I¿apari e Assis Brasil, no Acre. A Junta Internacional de Controle de Drogas, ligada à ONU, no relatório de 2003 apontou o Brasil como estratégico fornecedor de produtos químicos para o refino de drogas na Bolívia, no Peru e na Colômbia. A Operação Púrpura procurou identificar e reprimir a venda de permanganato de potássio para esse fim. As dificuldades crescentes enfrentadas na produção de coca a partir da pasta introduziram no Brasil vários laboratórios clandestinos de refino. Recentemente, a polícia de São Paulo reprimiu um deles. Estes laboratórios, situados nas proximidades dos centros de consumo no Brasil, diminuem os custos e os riscos, pois facilitam a compra e o transporte dos insumos químicos. O laboratório descoberto pela Polícia Federal em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em fins de julho de 2003, refinava pelo menos 400 quilos de cocaína por mês ou quase 5 toneladas por ano. A oferta de crack, inicialmente concentrada em São Paulo, já se difunde pelo Brasil, alargando o mercado e chegando ao consumidor de baixa renda. Pior que a cocaína, o crack é substância brutalizante em seus efeitos, o que explica parte das chacinas e até mesmo assassinatos em família, com cenas de horror. A existência de laboratórios de PBC no Brasil aproximou as redes de produção, distribuição e consumo de drogas, criando e multiplicando um tipo de atacadista antes pouco comum no País. Com isso o mercado brasileiro passou a ser prioritário para os narcotraficantes internacionais. O "efeito balão" citado pode explicar o retorno de movimentos - aparentemente políticos - que criam e criaram, nas últimas semanas, sérios problemas aos governos boliviano e peruano. No primeiro caso, diretamente associado ao plantio, mas apresentado sem associação com o refino, e, no segundo, num discurso nacionalista pelo menos curioso. No Estado do Rio de Janeiro, um levantamento feito a partir de notícias na imprensa mostra que o número de conflitos em torno do controle das bocas-de-fumo cresceu pelo menos 60% entre 2003 e 2004. As facções, antes concentradas no Rio e em São Paulo, hoje se multiplicam, com outros nomes, em cidades grandes e médias. As gravações entre um jogador de futebol e traficantes mostraram mais uma delas em Feira de Santana. Vitória reproduz com todas as características a dinâmica - narcovarejo, presídios, terror urbano - vista no Rio no ano de 2002. No início dos anos 1990, uma facção - Comando Vermelho - controlava 90% dos pontos-de-venda de drogas. Hoje se pulveriza e controla pouco mais de 50%. Novos comandos surgiram - ADA, TCP, TC - e não há mais a coesão interna que existia, explicando o aumento do número e dos pontos de confronto. E a repetição sistemática em complexos de muitas comunidades geminadas, como na Maré, São Carlos/Turano, Rocinha/Vidigal, Macacos... Se antes havia alguma dúvida quanto ao grau de envolvimento direto e necessário das forças federais, construindo força policial adjunta ao Exército, além da Polícia Federal, que conta com apenas 6 mil policiais, hoje não há nenhuma dúvida. E, se isso não for feito em breve, terá de ocorrer a fórceps. Ainda há tempo de este drama não se transformar em tragédia. Olhando para a Colômbia, poderíamos dizer: de te fabula narratur.