Título: No MP, estou mostrando que o útil é não ser autoritário
Autor: Vannildo Mendes
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2005, Nacional, p. A5

O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, vê com preocupação o embate, no governo, entre setores comprometidos com a democracia e um grupo com viés fortemente autoritário. Segundo Fonteles, essa contradição do governo está presente em todas as instituições do País, inclusive na família. Acredita que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - que a seu ver "não tem viés autoritário" - acabará por imprimir o rumo democrático nos segmentos reacionários de sua equipe. "Torço para que ele consiga mostrar que o caminho não é esse", disse.

De acordo com Fonteles, foi o governo - e não a imprensa, como insinuou o ministro interino do Planejamento, Nelson Machado - que produziu "uma tempestade em copo d'água" ao baixar uma portaria que obriga o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a entregar 48 horas antes aos ministérios os dados das pesquisas estruturais.

Com isso, a seu ver, o governo deu a falsa idéia de cerceamento da informação, quando o que se queria era apenas dar direito de defesa aos alvos das pesquisas.

Quanto à tentativa de restrição à divulgação do conteúdo pesquisado, o procurador é radicalmente contra. "Quem se sentir prejudicado que venha a público e coloque sua divergência. Assim se vive a democracia", enfatizou.

Em menos de 20 meses de mandato, Fonteles mudou o caráter operacional do Ministério Público, batendo de frente com as estrelas da instituição e imprimindo normas de atuação baseadas na integração e na ampliação de resultados. "Quem é estrela é artista, e nós, no Ministério Público, não somos artistas, somos servidores públicos", afirmou.

Outra de suas preocupações foi combater uma certa tendência à arrogância. "Na minha instituição, estou mostrando que o útil para a sociedade é não ser autoritário."

Em entrevista ao Estado, o procurador-geral fez um balanço da sua gestão à frente do MP e reafirmou que não disputará a recondução ao posto quando seu mandato terminar, em 30 de junho próximo.

Como o senhor avalia a afirmação do presidente do STF, ministro Nelson Jobim, de que os membros da Justiça devem servir mais ao cidadão e menos às vaidades pessoais?

Nós todos, membros do Ministério Público e magistrados, temos de ter na cabeça que somos servidores públicos. Não podemos nos sentir acima do público. O que o magistrado define tem de ser observado e nós (do MP) temos a gravíssima responsabilidade de postular. O magistrado só existe quando provocado, pois não pode agir por si próprio. Nós exercemos essa função essencial. Mas, dentro dessas magnas tarefas, nós não podemos nos sentir acima da comunidade. Aqui e acolá, tanto na magistratura como no MP, há esses espasmos de pessoas que se sentem acima do corpo social. Não. Nós servimos ao corpo social.

Essa realidade tende a mudar?

Sim e cada vez mais, à medida que se democratiza o País. Daí eu ser favorável ao Conselho Nacional da Magistratura e do MP (controle externo). Se você vai servir à comunidade, por que você vai temer que o parlamento, que representa a comunidade, não possa indicar suas pessoas, ou que os advogados, uma classe que litiga conosco, não possa indicar seus representantes? Não é para invadir a sua convicção. Mas para apontar falhas. Isso propicia o diálogo, a abertura das instituições. Isso é ser republicano. Fazer-se visível para a comunidade.

Paradoxalmente, o governo tem dado passos em sentido oposto, como a tentativa da lei da mordaça no Ministério Público e mais recentemente a censura prévia à divulgação de pesquisas pelo IBGE.

Eu não atribuo isso ao Executivo como um todo. Em toda instituição - na minha também e até numa família - existe aquele com um viés autoritário e aquele outro adepto do diálogo aberto, que admite o exame da sua conduta. O governo também tem essa contradição, assim como o MP e a instituição familiar. Existem nele aqueles com viés fortemente autoritário e aqueles que não o têm. Na minha instituição, estou mostrando que o útil é não ser autoritário. Eu torço para que o presidente Lula, que não tem esse viés, consiga imprimir o rumo democrático nos setores da sua equipe com viés autoritário. Acredito que conseguirá mostrar que o caminho não é esse.

Mas parece não ter sido esta a opção do governo no caso da censura prévia ao IBGE.

Está se fazendo um pouco de tempestade em copo d água. O que houve foi uma orientação para que o IBGE, antes de divulgar a sua pesquisa, ouvisse o órgão público pesquisado. Dar o direito de defesa. Agora, isso (a portaria do Ministério do Planejamento determinando a apresentação prévia da pesquisa ao governo antes da divulgação), evidentemente, não precisava ter sido feito em termos formais. Isso se faz internamente, com um telefonema, numa mesa, numa orientação de serviço. Como eu dou aqui para os meus chefes de unidades.

Mas é natural proibir uma instituição científica de divulgar o conteúdo da sua pesquisa?

Não. Se os pesquisadores do IBGE concluíram dessa maneira e publicaram a sua conclusão, o órgão governamental que sentiu que aquela conclusão não está correta tem de vir a público e colocar sua divergência. Assim se vive a democracia.

Como o senhor pegou e como deixa o Ministério Público?

O Ministério Público era uma instituição fechada e enclausurada, com uma forma de atuação fragmentada a meu juízo. Hoje ele se expõe e se apresenta, tanto quanto possível, num pensamento institucional. O marco da nossa gestão foi um forte trabalho integrativo, que não terminou ainda. Ele está expresso nas diversas visitas que fiz aos Estados da Federação. Esses encontros com os meus colegas procuradores levavam sete horas ou mais de conversa franca, aberta. Tentamos mostrar uma visão de MP como instituição da sociedade, em defesa dos maiores valores constitucionais para uma sadia convivência democrática. Sempre com essa idéia: para integrar, é preciso dialogar, expor e mostrar que o MP tem a missão de alcançar um modo de trabalho seguro, fundamentado e ponderado. Procurando, tanto quanto possível, evitar o estrelismo.

Mas o MP ganhou notoriedade pela atuação individual de alguns dos seus expoentes.

Essa idéia de estrela não se concilia bem com o papel do MP. Quem é estrela é artista. No MP, nós não somos artistas. Somos servidores públicos. Criamos uma cultura institucional, que é a da defesa dos interesses da sociedade. Hoje, ficou muito atrás no tempo aquela idéia de que o que é bom para o Estado é bom para a sociedade. Não. A democracia se alimenta muito fortemente desse embate entre a administração pública e a sociedade, que tem os seus anseios, traduzidos no MP, que é a voz institucionalizada, e nas vozes particularizadas nas organizações não-governamentais.

As relações do Ministério Público com os poderes da República eram muito tensas na gestão anterior. Isso mudou?

Eu abri um diálogo nacional, com todos os setores: o parlamento, o Judiciário - onde houve uma relação muito boa, honesta e leal, apesar das divergências - o presidente da República e os ministros. Com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o diálogo resultou na junção do aparelho de investigação do Estado com as instituições da sociedade, apesar das diferenças de pontos de vista. Isso permitiu que Estado e sociedade se unissem num combate histórico à narcocriminalidade.

E quanto aos resultados: o novo MP é mais produtivo?

Sim. É mais produtivo e mais ágil. No campo criminal, por exemplo, você tem todo esse combate real que a mídia cobre, nas diversas operações em delitos criminais de magna proporção. Hoje não se está pegando o cara que faz o descaminho na esquina de uma rua de uma cidade brasileira. Hoje nós estamos pegando as grandes organizações criminosas, nesse trabalho de parceria. Na área de ação direta de inconstitucionalidade, fizemos várias ações para preservar ditames constitucionais fundamentais, como a isonomia, a preservação do concurso para ingresso no setor público, o mérito, a moralidade administrativa e a necessidade da licitação. Desenvolvemos também ações nos setores ambiental e de defesa de minorias. Hoje, o Ministério Público tem esse posto de defesa da sociedade muito claramente.

O senhor usou o princípio de hierarquia para conter os excessos?

Hierarquia não é uma palavra compatível para o MP. Mas o procurador-geral, como líder, apresentou-se e se expôs. Mostrou-se e respeitou a divergência, mas não se furtou ao diálogo e nos diálogos conseguiu os caminhos comuns. Adotei providências para conter os excessos. Mas a principal delas foi abrir o diálogo, franco e leal, no qual mostrei que a instituição cresce nessa expressão de maturidade, mais do que a coisa episódica, fantástica. O MP ganhou com isso.

O caso dos procuradores (José Roberto Santoro e Marcelo Serra Azul) flagrados em investigação clandestina teve alguma conseqüência?

Está na área disciplinar. Ainda não houve definição e eu não posso interferir no trabalho da corregedoria. As medidas que adotamos para combater o personalismo sinalizam que o MP tem comando. É importante ter um comando, mas um comando democrático, que debate, vai ao colega, olha nos olhos e conversa com ele.