Título: Um homem de visão
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2005, Nacional, p. A6

O presidente do PT, José Genoino, freqüentou o noticiário dos jornais de ontem - aniversário de 25 anos do partido - pondo e dispondo a respeito da crise de identidade petista, pregando novas teses, segundo ele, necessárias à adaptação aos novos tempos. Defendeu ritos mais sumários para punições de rebeldes, recomendou redução no exercício do pragmatismo explícito, teceu loas à militância, apontou excessos no uso do marketing, pronunciou-se a favor da busca do equilíbrio entre convicção e responsabilidade, falou até dizer chega.

Não obstante a abundância de assunto, Genoino não sustentou idéias conclusivas, deixando a impressão de que o dilema do partido no poder virou uma obra em aberto.

Muito mais precisão e clareza de raciocínio a respeito do tema o mesmo José Genoino exibia um mês após a eleição de Luiz Inácio da Silva, em novembro de 2002, pouco antes de assumir o lugar de José Dirceu na presidência do partido.

Na época, ele tinha uma convicção inabalável: o partido precisava fazer, antes da posse de Lula, uma adaptação aos novos tempos que viriam; na visão de Genoino, era uma providência indispensável para o sucesso da conversa que então estava prestes a se iniciar.

"É preciso que funções e concepções de partido e governo fiquem bastante nítidas e compreendidas. Sem isso vamos nos atrapalhar", dizia ele, numa perfeita antecipação do cenário de dois anos e meio depois.

O receio do então deputado federal era o PT vir a ter o mesmo destino "de outras legendas populares que, uma vez no poder, terminaram estatizadas, sem identidade nem autonomia".

Na ocasião, Genoino citou alguns exemplos de partidos europeus, mas fixou o resumo de sua tese em dois exemplos caseiros: o PTB e o PMDB.

"O PTB surgiu como um partido de massas, mas foi engolido pelo getulismo; o PMDB virou governo na Nova República e perdeu toda a afirmação partidária."

Pausa para registro do esforço do PT/governo em servir-se dos espólios das referidas legendas e do tratamento de mercadorias que hoje confere a elas. Com a anuência da totalidade dos petebistas e de parte dos pemedebistas.

Em novembro de 2002, ao apontar os erros em que o PT não poderia incorrer, Genoino afirmava em relação ao PTB e ao PMDB: "Nenhum dos dois preservou seus valores e acabaram ambos sucumbindo às conveniências do Estado, que são muito mais amplas que as circunstâncias partidárias. Daí a complexidade da questão".

Tão complexa que o PT está em vias de sucumbir a ela.

Quando Genoino fazia a defesa da preservação da autonomia, alertava também para o imperativo de a independência não se tornar sinônimo de oposição.

"Andaremos num fio de navalha: o partido precisa defender o Estado mas não deve ter presença preponderante na máquina do estatal. A última coisa em que o PT pode se transformar é em administrador de cargos, perderia toda sua função de educação política."

E prosseguia em diatribe contra o dirigente partidário com figurino de burocrata de aparelho - "isso é coisa de ditadura de esquerda, onde o partido dirige tudo, já que ele mesmo representa o Estado".

Se o leitor reconhecesse aqui o modelo ensaiado - depois parcialmente revisado, mas nunca corrigido - da concentração de todo o poder político e administrativo na figura do generalíssimo José Dirceu, não estaria errando.

O mais impactante, por incongruente, na releitura da análise da crise anunciada feita por José Genoino em 2002, é a veemência na sustentação da tese da "rebeldia cívica".

Dois meses antes do início do novo governo, o então futuro presidente do PT dizia que o partido não poderia "sequer cogitar" a possibilidade de abrir mão de seu atrevimento, de sua "rebeldia cívica".

Para isso, para não tentar tornar o PT domesticável, Genoino considerava indispensável que os dirigentes mantivessem prudente eqüidistância do governo.

"Vai ser preciso transitar por uma linha fina", dizia, "a fim de evitar que amanhã, por qualquer descontentamento, a maioria decida se transferir para a oposição."

E aqui Genoino chegava exatamente ao ponto em que se encontra hoje o PT: pregando mudanças para conter os descontentamentos, recuperar apoios, firmar identidade, reencontrar ao menos um discurso.

Reincidência

Explicação da superintendente do Incra em Pernambuco, Maria Oliveira, para o assassinato de um policial no assentamento do MST em Bananeiras: "Trata-se de um crime comum que ocorreu dentro de um assentamento."

Trata-se, pois, do segundo "crime comum" ocorrido "dentro de um assentamento" num período de um ano de cinco meses.

Em agosto de 2003 o repórter fotográfico Luiz Antonio da Costa, da revista Época, foi assassinado enquanto fazia a cobertura da invasão de um terreno da Volkswagen por 5 mil sem-terra, em São Bernardo do Campo.

Lá, como cá, os criminosos refugiaram-se dentro dos acampamentos e obtiveram proteção, o que se configura, no mínimo, reincidência merecedora de atenção por parte do poder público. Mais não seja, para conferir a fim de não virem as autoridades a delinqüir por co-autoria decorrida da prática da leniência continuada.