Título: Quando os fatos criam pernas
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2005, Nacional, p. A6

A fotografia do petista Virgílio Guimarães, candidato avulso à presidência da Câmara, no Sambódromo, abraçado ao ex-governador Anthony Garotinho, candidato volante à Presidência da República, é um retrato do desacerto algo carnavalesco que assola as relações do PT consigo mesmo. Nesse ritmo, muito em breve o partido terá de pensar seriamente num plano alternativo à reeleição de Luiz Inácio da Silva, a fim de, na hipótese de não conseguir mais quatro anos de poder, voltar à oposição com um mínimo de rumo e unidade no tocante a ações e pensamentos.

Ao se atirar, literal e explicitamente, nos braços de Garotinho, Virgílio Guimarães fez um gesto de provocação. Pagou para ver a extensão das ameaças de punição por lançar-se e insistir-se candidato, pôs a teste a força política do governo e, não sendo leso do juízo, imagina-se que o tenha feito sustentado em algum cacife.

Senão para ganhar, no mínimo para integrar com destaque um pólo de resistência e permanente contraponto à liderança de Luiz Eduardo Greenhalgh, caso o candidato oficial do PT venha mesmo a conquistar a presidência da Câmara.

O discurso formal de que os movimentos atuais são mera e legítima performance de disputa eleitoral, e uma vez proclamado o resultado tudo volta ao normal, se não é deliberadamente falso, é ingenuamente ilusório.

Nada voltará a ser como antes, pois as coisas estão se distanciando muito de seus lugares. O PT, até agora liberal em relação ao troca-troca no partido do vizinho, mas muito austero na proteção de sua cidadela contra ingerência alheia, já começa a admitir como plausível a prática da filiação temporária de estranhos para não perder a condição de maior bancada da Câmara para o PMDB de Anthony Garotinho.

Ora, uma vez rompida essa barreira - tal como outras foram rompidas -, o princípio anterior fica automaticamente extinto. Assim ocorre com o passo de Virgílio Guimarães em direção a Garotinho. Não tem volta, sinaliza disposição de fazer política não apenas fora, mas a despeito do PT.

Quando a senadora Heloísa Helena partilhou publicamente com Leonel Brizola suas divergências com o PT, ali expressou o desapego partidário como possibilidade real. Os dirigentes petistas interpretaram que ela ali expressava propensão a atuar como adversária e desse modo a questão foi encaminhada.

Os acontecimentos subseqüentes obedeceram à dinâmica dos processos que criam pernas próprias, independem de vontades, não raro desmontam estratégias.

O Anthony Garotinho que hoje joga em parceria com o petista avulso e boa parte da base parlamentar dita governista é o maior inimigo político do Planalto. Já foi, no entanto, muito amigo da mesma turma que aponta traição em Virgílio Guimarães, mas também deu as costas aos seus quando em jogo estava a chance de uma vitória.

Em nome de uma aliança com Garotinho para a eleição de 1998 ao governo do Rio de Janeiro a cúpula petista patrocinou uma ofensiva de terra arrasada sobre o diretório regional do PT, anulou a escolha de Vladimir Palmeira como candidato do partido, tratou os correligionários como adversários e imprimiu aos militantes a feição de horda de levianos.

Os poderosos chefões da nação petista ignoraram a decisão do partido e ficaram com a vaga de vice para a então senadora Benedita da Silva, acreditando matar vários coelhos de um golpe só: isolar a inconveniente esquerda (festiva e "ipanemense" na visão dos comandantes paulistas), ocupar o governo do Estado com a já prevista desincompatibilização de Garotinho para marcar presença na disputa presidencial de 2002, buscar reforço regional ante Brizola - um aliado problemático -, consolidar o partido no Estado mais visível do Brasil e, assim, no acúmulo de forças de Rio e São Paulo, partir para o abraço na sucessão de Fernando Henrique Cardoso.

Lula de fato obteve votação espetacular e o apoio de Garotinho no segundo turno mas, no meio do caminho, o PT do Rio foi destruído e as expectativas da cúpula frustradas. Rompeu-se a aliança com o então governador - cujo gesto de apelidar o PT de "partido da boquinha" traduziu seu apreço ao parceiro - e, no lugar do sonho esperado, o período de Benedita da Silva no Palácio Guanabara revelou-se um desgastante pesadelo.

À exceção de manifestações meramente retóricas de arrependimento, o PT não fez a autocrítica desse e de outros equívocos. De certa maneira isso dá a Virgílio autoridade para repetir o mantra segundo o qual se movimenta hoje em pleno acordo com procedimentos desde sempre adotados pelo PT.

Alia-se a Garotinho um tanto indiferente ao dia seguinte, bem como a cúpula governista revela descuido e menosprezo às conseqüências quando trata as várias manifestações de desapego partidário - do primeiro episódio com os chamados radicais, às recentes desfiliações de petistas desiludidos, passando pelos alertas dos insatisfeitos - como episódios isolados perfeitamente controláveis pelo fato de representar o poder.

Esquece-se, porém, de que a representação não é uma causa, é um resultado.