Título: Há 5 anos, Lula dizia que só queria criar um partido
Autor: Vera Rosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2005, Nacional, p. A6

Em depoimento inédito gravado pelo "Estado" em abril de 2000, o então presidente de honra do PT contou a trajetória de criação da legenda BRASÍLIA - Sempre que fala sobre a criação do PT, Luiz Inácio Lula da Silva fica emocionado. Fundador do partido, o atual presidente da República tem memória afiada: lembra de tempos bicudos, histórias da ditadura, amigos de sindicalismo. "Criamos o PT graças a meia dúzia de abnegados", contou Lula. Suas afirmações estão em depoimento gravado pelo Estado, em abril de 2000, para reportagem sobre os 20 anos da greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1980. Os trechos citados abaixo são inéditos. Na época, o então presidente de honra do PT conversou durante quase duas horas com a repórter, na sede do partido, em São Paulo. Sentado diante de cartazes com inscrições contra a ditadura, lembrou, por exemplo, que expôs pela primeira vez sua idéia de criar um partido de trabalhadores em 1978, quando ainda comandava o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foi num congresso de petroleiros, em Salvador, "na presença de Fernando Henrique Cardoso", que na ocasião era suplente de senador. Muitos políticos do MDB pareciam entusiasmados com o projeto, mas era tudo fogo de palha. Além disso, a sigla PT também assustava.

"Eles achavam que era uma coisa muito estreita", disse Lula, descontraído. Depois, admitiu que o temor procedia. "Nós éramos realmente muito estreitos, não vou negar. Na minha cabeça, o dono de um bar já era patrão, já era meu inimigo de classe. O tempo foi ensinando que não é assim", afirmou.

Fiel ao estilo de fazer comparações, Lula mais uma vez recorreu à metáfora para explicar o cenário de uma época em que só existiam Arena e MDB. "Criar o PT era largar um passarinho sem a certeza de que ia ter dois para pegar. Então era melhor um na mão do que dois voando", comentou. "Quando a gente ia convidar o pessoal para entrar no PT, companheiros como o Genoino perguntavam: "Mas o PT é tático ou estratégico?", recordou Lula, rindo muito, numa referência a José Genoino, que hoje preside o PT e naquele tempo era do clandestino PCBR. "Eu respondia: "Puxa, só quero criar um partido. Não me ponham minhoca na cabeça!". Comentário parecido consta do filme "Entreatos", de João Moreira Salles, que mostra bastidores da campanha de Lula, em 2002.

Como o senhor teve a idéia de criar o PT?

Na minha cabeça tudo começou por causa de uma bobagem do Arnaldo Prieto. Ele era ministro do Trabalho e, então, mandou uma lei para ser votada no Congresso, criando as categorias excepcionais, que não podiam fazer greve. Entre elas estavam a dos bancários, dos professores, funcionários públicos, frentistas, que não podiam nem se organizar em sindicatos. Aí eu resolvi convidar os dirigentes sindicais para ir a Brasília lutar contra isso. O ministro fez um pronunciamento em cadeia nacional proibindo a gente de ir para Brasília. Você acredita nisso? E ameaçando cassar quem fosse. Aí eu pedi licença do sindicato. Ele ia cassar o quê?

Aí o senhor foi a Brasília?

Eu fui. Cheguei lá e descobri que não tinha trabalhador no Congresso. Só havia dois: o Marcílio e o Aurélio Peres. Aí veio a idéia de criar o partido.

Mas quando foi a primeira vez que o senhor falou publicamente sobre a formação de um partido dos trabalhadores?

Foi num congresso dos petroleiros, no Hotel da Bahia, em Salvador, no dia 15 de julho de 1978. Na presença do Fernando Henrique Cardoso, do Almino Affonso, do Jacó Bittar (hoje no PSB) e de outros companheiros. Lá eu falei que estava chegando o momento de a classe trabalhadora se organizar politicamente. A partir daí, nós criamos um movimento pró-PT em 1979 e o PT em 1980.

Como foi a reação? Houve muita ciumeira?

O MDB e a Arena não acreditavam nessa possibilidade e os partidos pequenos estavam clandestinos dentro do MDB. Nós tivemos muita dificuldade, porque os dirigentes sindicais ligados ao Partidão, que a gente não sabia que eram do Partidão, eram contra o pró-PT. Os ligados ao PC do B e ao MR-8 também eram contra. Mas a gente não sabia que eles eram dessas organizações. No momento em que soubemos, resolvemos criar o nosso partido. O problema é que, quando a gente ia convidar o pessoal para entrar no PT, companheiros como o Genoino perguntavam o seguinte: "Mas o PT é tático ou estratégico?" E eu respondia: "Puxa, só quero criar um partido. Não me ponham minhoca na cabeça!"

Mas Fernando Henrique, então no MDB, chegou a falar com o senhor sobre a possibilidade de se filiar ao PT?

Houve um momento em que todo mundo queria formar um partido novo. Nós fizemos em São Bernardo do Campo, em 1979, um grande seminário com a participação de quase 90 deputados: Alceu Collares, Chico Pinto, Aírton Soares, toda aquela turma das tendências populares, o Almino Affonso, o Fernando Henrique... A gente imaginava, naquela época, que eles fossem querer entrar no projeto de criar um partido. Eles queriam criar um partido, é verdade, mas não queriam sair do MDB. Criar o PT era largar um passarinho sem a certeza de que ia ter dois passarinhos para pegar. Então era melhor um na mão do que dois voando... Eles tinham medo de que o nome Partido dos Trabalhadores fosse muito estreito, que não fosse pegar. Achavam que seria preciso mudar de nome. A gente não aceitava. Criamos o PT graças a meia dúzia de abnegados, como o Olívio Dutra (hoje ministro das Cidades), o Jacó Bittar, o Wagner Benevides, enfim, alguns companheiros que acreditaram que era possível.

Eles achavam que a sigla PT não ia pegar porque poderia ser associada a comunismo?

Não. Achavam que era uma coisa muito estreita. Nós éramos realmente muito estreitos, não vou negar. Na minha cabeça, o dono de um bar já era patrão, já era meu inimigo de classe. O tempo foi ensinando que não é assim. A divisão não é tão simplista assim. Então eles preferiram continuar no MDB.

O senhor já disse que os sindicalistas da sua geração eram "meninos desaforados". Quando entraram no PT eles continuaram assim?

Nós só fizemos o que fizemos porque não tínhamos uma formação política de organização. Nós não éramos enquadrados. Meu irmão Frei Chico, por exemplo, era do Partidão e mais politizado. Vivia com medo de que eu fosse preso. Em 74, 75, tinha diretor do sindicato que falava o seguinte: "Companheiros e companheiras, nós só vamos resolver os problemas do Brasil na hora em que o sangue estiver batendo nas canelas." Era assim. A gente falava e todo mundo ficava com medo de que iam prender. Prender nada. Eu era chamado no Dops quase todo dia para prestar conta dos discursos. Quando fomos julgados, um juiz chegou para o Ratinho e falou: "Sr. José Dilermando, o sr. pode explicar por que estava fazendo greve?". Ele levantou. Imagine se pessoas organizadas fariam isso! Mesmo porque já tinham apanhado na cadeia. Na mesa estavam dois militares e um civil. O Ratinho chegou, pôs o pé na mesa e respondeu: "Sabe por que eu estou nesse negócio? Olha o meu sapato. Eu tenho 17 anos de forja. Olha como está meu pé." Um dos militares falou: "O sr. não pode pôr esse pé aí." Aí ele colocou o outro: "Está aqui o outro também." Essas coisas a gente só podia fazer porque era desaforado.

Por que a CUT foi criada só três anos depois da formação do PT?

Era para ter sido um ano depois. Mas quando nós começamos a criar o partido, pessoas do MDB, lideradas por Almir Pazzianotto, começaram a nos fazer críticas, achando que deveríamos criar uma central, e não um partido. Era aquela idéia fantástica de que a gente não tinha de se meter em política e devia ficar no sindicato.