Título: FMI e América Latina, a decepção
Autor: Rolf Kuntz*
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2005, Economia, p. B2

O mundo gira, a Lusitana roda e a América Latina derrapa. Isso ocorreu de novo nos últimos 15 anos. A proporção dos pobres passou de 48,3% em 1990 para 44,4% da população em 2003, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Uma vergonha. Os governos continuam perigosamente endividados e a região permanece vulnerável a choques de todo tipo. Nada mais natural, dirão os críticos habituais da pauta reformista adotada nos anos 80 e 90 sob inspiração - insistem - do famigerado Consenso de Washington. Há muito tempo, acrescentarão, os governos deveriam ter voltado ao figurino desenvolvimentista. Também o Fundo Monetário Internacional (FMI), um dos principais pregadores da agenda de reformas, admite que algo deu errado. Num estudo recém-divulgado, sete economistas de sua equipe fazem um balanço da experiência decepcionante, propõem um diagnóstico para os males da região e repetem a receita familiar: é preciso perseverar nas mudanças e aprofundá-las.

Não há propriamente uma autocrítica, nesse estudo, mas a admissão de que o Fundo deve adotar uma agenda mais voltada para o crescimento, com maior atenção à infra-estrutura, ao setor empresarial e ao mercado de trabalho. Além disso, é claro, a instituição deve aperfeiçoar seu papel de supervisão, especialmente dos países que se mantiveram mais dependentes de sua ajuda.

Os críticos da liberalização concentram os ataques na pauta de reformas, isto é, no que os governos fizeram. Os economistas do FMI chamam a atenção principalmente para o que os políticos deixaram de fazer. Vale a pena destacar alguns pontos, embora geralmente conhecidos:

Os governos avançaram menos do que deviam na arrumação fiscal. Isso resultou em maior endividamento público;

as autoridades abriram a conta de capital antes de aprofundar a integração comercial nos mercados globais. Isso aumentou a vulnerabilidade a turbulências internacionais;

a abertura econômica foi muito limitada. Deu-se prioridade a acordos de comércio regionais, que não resultaram em ampliação de exportações para fora da região;

as mudanças institucionais foram insuficientes para criar um ambiente propício ao investimento produtivo.

Não é preciso ser um porta-bandeira do Consenso de Washington para reconhecer que essas críticas, de modo geral, são pertinentes. Para ficar apenas no caso do Brasil, é fácil admitir que o ajuste fiscal foi até agora insuficiente e que o aperto efetivo das contas federais começou muito tarde. Isso explica, em parte, a facilidade com que os bancos mantêm spreads elevadíssimos. O relatório chama a atenção - e isso é até certo ponto novidade - para a concentração financeira e para o que os bancos ganham refinanciando a dívida pública.

É igualmente fácil reconhecer, no caso brasileiro, que o aumento da exportação só se tornou prioridade oficial a partir de 1999. Também se pode admitir sem maior dificuldade que o Mercosul nunca se tornou uma base para a expansão do comércio com o resto do mundo.

Se o relatório é insuficiente, não é por insistir na realização de reformas que permaneceram incompletas na maior parte da América Latina. O que falta ao relatório é o reconhecimento da importância de políticas bem definidas de desenvolvimento econômico e de inserção internacional.

Políticas bem definidas iriam muito além de reformas liberalizantes. Incluiriam mudanças tributárias destinadas a facilitar o investimento e a tornar a produção mais competitiva. Passariam a limpo os orçamentos públicos, para concentrar recursos em programas eficientes de formação de capital humano, de estímulo à pesquisa e de modernização da infra-estrutura - em cooperação com o setor privado, onde fosse possível. Políticas ativas, além disso, tornariam a administração pública mais leve e mais ágil, profissionalizando o serviço público e eliminando o custo do empreguismo.

A expressão políticas ativas pode parecer redundante, mas não é. O adjetivo é necessário para marcar a diferença em relação às políticas meramente liberalizantes, orientadas pelo pressuposto de que o mercado fornecerá as iniciativas necessárias. O apagão de 2001, no Brasil, foi em grande parte uma conseqüência dessa aposta.

O novo relatório do FMI - Estabilização e Reforma na América Latina uma Perspectiva Macroeconômica desde o Início dos 90 - apenas consolida uma porção de informações bem conhecidas. De modo geral, não é inovador nem distorce os dados da experiência. É apenas parcial na interpretação da história recente da América Latina e pouco ousado - o que é compreensível - ao defender um papel mais ambicioso para a instituição.

*Rolf Kuntz é jornalista