Título: Teatro fez dele porta-voz dos injustiçados do mundo
Autor: Antonio Gonçalves Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2005, Vida, p. A14

Desejo de justiça social já estava presente em texto de 1937 e marcou toda a produção do autor Arthur Miller nasceu em 1915 e cresceu no bairro do Harlem em meio a uma vizinhança de judeus, "alguns italianos e poucos irlandeses". Veio de uma aldeia, diria anos mais tarde em um livro autobiográfico. No entanto, em nove décadas de existência o teatro fez dele uma personalidade mundial e uma espécie de vizinho solidário dos injustiçados de todas as castas. Foi e é encenado até hoje nas grandes metrópoles da Europa e das Américas e é, além disso, uma das raras vozes da dramaturgia ocidental a despertar o interesse dos encenadores asiáticos. Inspecionando as raízes históricas da sua própria inclinação para solidarizar-se (e ser ouvido) por pessoas das mais diferentes regiões do planeta, Miller invocaria os acontecimentos dos anos 30 do século 20 no seu país: "A partir da Grande Depressão de 1929, a América e o mundo parecem ter despertado para um novo sentido de responsabilidade social, alguma coisa que para os jovens se assemelhava muito ao amor." Em 1937, esse amor difuso se transfigurava no desejo de justiça social e assumia a forma de uma peça-denúncia sob o sistema prisional que garantiu ao seu autor um prêmio universitário. Eram Todos Meus Filhos, a terceira peça, foi escrita durante a guerra como uma candente denúncia do mercantilismo da indústria bélica. Estreou profissionalmente em 1947 e deu início a uma das carreiras mais controvertidas da cena norte-americana. Aos sucessos comerciais de algumas das suas peças se alternaram fracassos de bilheteria e, do mesmo modo, a recepção crítica oscilou entre entusiasmo e rejeição. Alguns dos seus experimentos mais no panorama do pós-guerra tiveram de atravessar o Atlântico para fazer sucesso em Londres e transferir-se daí para outras capitais européias. A repercussão sobre a vida intelectual norte-americana foi, no entanto, constante e decisiva.

Até os anos 70 do século 20, Miller foi um ponto de referência para toda a dramaturgia cujo alvo se expandia além do produto comercial.

Em parte, isso se deve a uma constante e repetida exploração, em todas as suas peças, das operações concretas por meio das quais o capitalismo aliena o indivíduo de comunidade. Willy Loman, o protagonista de A Morte do Caixeiro Viajante (1947) e uma das personagens mais representadas do teatro mundial, vive em um estado de solidão terminal porque, tendo fracassado nos negócios, não consegue ser feliz com a oferta real de amor da família e dos amigos. Também em outras peças de igual estatura artística, como As Bruxas de Salem escrita em 1953. Panorama Visto da Ponte, escrita em 1955, e Incidente em Vichy, de 1964, a trama social desenhada pelo drama vitimiza, de formas diferentes, personagens fundamentalmente íntegros.

Há outras razões, além do foco temático, sustentando esse marco teatral do século 20. Tomando como modelo e fonte de inspiração Henrik Ibsen, o epígono do teatro realista, Miller prosseguiu na vertente de transfiguração do real que esse modelo sugeria nas últimas obras. Tomadas em conjunto, suas peças recorrem a um complexo arsenal de técnicas do teatro moderno sem que nenhuma delas pareça um artifício construtivo. Há imensos bifes de pura literatura, brilhante e pontilhada de truques retóricos que as tornam inesquecíveis. São desse teor as prédicas do velho Solomon em O Preço. Recursos do teatro épico, sob a forma de manipulações do tempo, narrativas e personagens corais pontuam várias peças. Quando necessário, o tumulto psicológico exprime-se por articulações cheias de fraturas, moldadas sobre o naturalismo. Tudo porque: "A vida não tem forma - conecta-se por lapsos de tempo, acontecimentos simultâneos em lugares separados, hiatos de memórias. O melhor teatro é um experimento dessas tensões."