Título: Morre o dramaturgo Arthur Miller
Autor: Antonio Gonçalves Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2005, Vida, p. A14

Ele revolucionou o teatro com o realismo de 'A Morte do Caixeiro Viajante' e iria completar 90 anos em outubro Arthur Miller, o dramaturgo que enterrou o sonho capitalista americano em A Morte do Caixeiro Viajante (Death of a Salesman, 1949), morreu na noite de quinta-feira, de insuficiência cardíaca, aos 89 anos, em sua casa de Roxbury, Connecticut, informou ontem sua secretária, Julia Bolus. Segundo sua assistente, Miller estava cercado por parentes, dado importante, especialmente quando se considera que, nas últimas entrevistas, o autor chamou a atenção para as conseqüências da falta de solidariedade e desintegração familiar no mundo contemporâneo. Como se sabe, o tema de sua peça mais conhecida é justamente a fé inabalável do caixeiro viajante Willy Loman no capitalismo. Desempregado e deprimido, ele decide se matar para que sua família receba o dinheiro da companhia de seguros. Miller desmontou o sonho ingênuo de ascensão de miseráveis caixeiros - numa época em que os Estados Unidos emergiam como superpotência. Conquistou os críticos, ganhou o prêmio Pulitzer, conheceu sua futura mulher Marilyn Monroe e ficou marcado pelos políticos que alimentaram a Guerra Fria, especialmente o senador Joseph McCarthy, comandante da cruzada anticomunista que o processaria, em 1956. A Morte do Caixeiro Viajante, desde a estréia, foi traduzida em 29 línguas. Miller não desbancou Eugene O'Neill do posto de melhor dramaturgo americano do século 20, mas é o mais popular, o mais estudado pelos universitários americanos e ainda o mais montado nos EUA - A Morte do Caixeiro Viajante teve um revival na Broadway por seus 50 anos e faturou todos os prêmios Tony de 1999, o Oscar do teatro americano.

Apesar disso, o dramaturgo considerava As Bruxas de Salém (The Crucible, 1953) sua obra-prima. Se A Morte do Caixeiro Viajante foi uma "bomba-relógio" que ameaçou detonar o sonho capitalista, a segunda pretendeu ser uma alegoria da perseguição feudal ao diferente no democrático território americano, tema que antecipou em meio século o perigo da intolerância nos EUA. Apesar de ambientada no fim século 17 e adotar como tema o julgamento de jovens inocentes acusadas de bruxaria, a peça trata, evidentemente, das perseguições da era McCarthy, que levou a julgamento Miller e amigos (entre eles Elia Kazan, diretor de A Morte do Caixeiro Viajante, que delatou companheiros para salvar a carreira). O herói da peça, John Proctor, recusa o gesto de Kazan. Silencia para proteger amigos e vizinhos. Paga com a morte.

Miller, sempre que possível, rememorava o digno Proctor. Em 1966, como presidente do Pen Club Internacional, recebeu um pedido para interceder junto ao general Gowon e salvar a cabeça de Wole Soyinka. Miller escreveu em seu nome pessoal, mas o militar nigeriano não conhecia uma só peça de Miller. Lembrou, no entanto, que Marilyn Monroe foi sua mulher e poupou a cabeça do primeiro africano a receber o Nobel de Literatura. Soyinka deve o milagre à santa Marilyn.

O episódio é contado na última parte da autobiografia do dramaturgo, Uma Vida (Timebends), lançada aqui em 1989 pela editora Guanabara. Miller é bem discreto em relação à estrela, com quem casou em 1956, mesmo ano em que o senador McCarthy levou-o ao banco dos réus, acusando-o de atividades antiamericanas. O dramaturgo já era, então, íntimo do ambiente cinematográfico. A Morte do Caixeiro Viajante havia sido filmada com Frederic March (em 1951) e, na época, ele escrevia o roteiro de Os Desajustados (The Misfits), que finalmente seria filmado por John Huston em 1961, marcando o fim da vida de Marilyn Monroe.

O roteiro era uma tentativa de dar uma guinada na carreira do maior ícone americano, visto como uma loira sensual e estúpida. Seria o primeiro papel "sério" de Marilyn, mas ela já era tão dependente de barbitúricos que dificilmente alguém poderia ajudá-la a encontrar a saída de emergência no inferno em que vivia. Numa conversa com o historiador inglês Eric Hobsbawn, em 1989, Miller confessou que se deixou seduzir por sua beleza e graça física, mas que fez pouca coisa para salvar a mulher da paranóia e das pílulas para dormir. Poderia, por exemplo, ter enfrentado os produtores e interromper as filmagens, mas o autor deixou que a indústria consumisse seu ídolo. Marilyn dizia que Miller a traía, como todos os outros, mas Miller jura que ninguém poderia ter evitado seu suicídio, em 1962.

Generosa em detalhes autobiográficos, a peça Depois da Queda (After the Fall, 1964) foi recebida com desprezo imerecido por alguns críticos americanos, que o acusaram de atacar a memória da estrela. Para piorar, há uma conexão incômoda entre as atrocidades sofridas pelos judeus e a relação tempestuosa de Quentin com seus semelhantes, tema que o próprio Miller já havia tratado logo após o fim da 2.ª Guerra em Focus (Focus, 1945), sua única novela (lançada pela Ediouro). Focus conta como um anti-semita, após passar a vida discriminando minorias, é confundido com um judeu quando passa a usar um bizarro par de óculos.

Filho de judeus, Miller nasceu em Nova York e iria completar 90 anos em 17 de outubro. Foi criado no Harlem numa família de classe média, que empobreceu com a Depressão de 1929. A decadência do pai, antes um próspero comerciante de tecidos, foi a evidente fonte de inspiração de seu primeiro sucesso, A Morte do Caixeiro Viajante, esboçada num conto escolar escrito aos 17 anos. Desde cedo, Miller desconfiou que havia algo errado com a América. Precisou entrar no teatro para descobrir o que era.