Título: Além da trégua
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2005, Notas e Informações, p. A3

N esses quase 12 anos que se seguiram ao aperto de mãos entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, nos jardins da Casa Branca, a seqüência de grandes esperanças e de enormes frustrações habituou o mundo a encarar com ceticismo toda iniciativa de paz entre israelenses e palestinos. Não é diferente agora, depois de novo aperto de mãos, desta vez entre o primeiro-ministro Ariel Sharon e o presidente Mahmoud Abbas, em um resort egípcio às margens do Mar Vermelho. Ali eles selaram o acordo verbal de interromper o círculo vicioso do que chamaram ações violentas contra os isralenses e atividades militares contra os palestinos.

O ceticismo se justifica, primeiro, porque o Hamas, o principal movimento armado palestino, já fez saber que não se julga comprometido com a trégua. Segundo, porque não se sabe se o sucessor de Arafat, eleito há apenas um mês, terá condições de partir para um confronto aberto com os radicais, caso não consiga contê-los, que dirá desarmá-los, por meios políticos. Terceiro, porque é certo que Israel não deixará de responder a uma provocação terrorista, o que poderia levar tudo de volta à estaca zero. Sharon nem teve apoio unânime do seu Gabinete para o acordo de cessar-fogo - por sinal, um termo que o governo israelense rejeita.

E há uma quarta e mais profunda razão para não se tomar como algo mais do que uma manifestação de bons propósitos as belas palavras proferidas terça-feira no balneário de Sharm-el-Sheik. Abbas falou em "começo de uma nova era". Sharon, no direito palestino à "independência e dignidade". A razão é a diferença essencial de tempos e prioridades nas agendas das duas partes. Sharon tem pressa para a neutralização das organizações que, desde o advento da segunda intifada, em 2000, mataram mil israelenses e feriram outros 7 mil (no mesmo período, 3.500 palestinos foram mortos e 28.400, feridos). Mas ele não tem pressa para negociar a paz definitiva na região.

De seu lado, Abbas quer agir contra os extremistas em ritmo compatível com o seu ainda incerto poder efetivo, mas quer o quanto antes a retomada das conversações com Israel - para ganhar a musculatura política de que necessita na sua queda-de-braço com o Hamas. É certo que os palestinos estão fartos de pagar o preço brutal que Israel deles cobra com as suas represálias aos bárbaros atentados contra os seus. Mas se identificam com o Hamas na denúncia da corrupção e do autoritarismo da Autoridade Palestina de Arafat. A facção foi a mais votada em eleições municipais depois da posse de Abbas e poderá sair-se bem no pleito para o Parlamento, em julho.

Os israelenses sabem que ele não padece das ambigüidades de seu antecessor em relação ao uso da violência como meio de libertar a Palestina, mesmo depois de reconhecer Israel e enquanto negociava com o Estado judeu. Sem ter um átimo da mística de Arafat, mas com um realismo que o faz respeitado, Abbas foi abertamente contrário à segunda intifada, por julgá-la contraproducente para a meta do Estado palestino. Se outros motivos não houvesse para confiar no seu pragmatismo, bastaria a sua anuência à ida do general americano William Ward como consultor de segurança da Autoridade Palestina.

Para saber se, além da trégua, a curto prazo Israel dará mais a Abbas do que a prometida libertação de 900 palestinos e a retirada de suas tropas de cinco cidades da Cisjordânia, seria preciso saber quais são as intenções a longo prazo de Sharon. Contra a oposição de parte ponderável de seus partidários, ele manteve a decisão de remover os assentamentos judaicos de Gaza. Para outros críticos, isso é o começo e o fim das "dolorosas concessões" que ele disse que faria pela paz. Anteontem Sharon afirmou que os israelenses tiveram de "despertar penosamente de seus sonhos" - e conclamou os palestinos a "abandonar sonhos irrealistas".

Sharon há de achar irrealista a aspiração palestina de constituir o seu Estado, com a capital em Jerusalém Oriental, no que eram a Cisjordânia e Gaza antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, além do desmantelamento das colônias israelenses em expansão ainda hoje e uma solução para o problema dos seus refugiados. Mesmo os colaboradores mais próximos de Abbas estão convencidos de que Sharon quer impor unilateralmente as fronteiras do Estado palestino, anexando parte significativa da Cisjordânia - ao que o presidente Bush certa vez se referiu sintomaticamente como "as realidades da situação". Essa pax israelensis nem Abbas poderá aceitar.