Título: O `coronel¿ da Câmara
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/03/2005, Notas & Informações, p. A3

As conseqüências, diria o conselheiro Acácio, sempre vêm depois. O apagão de discernimento político que tornou possível a eleição de Severino Cavalcanti para presidente da Câmara dos Deputados na madrugada de 16 de fevereiro tem produzido efeitos inquietantes para o funcionamento e a imagem da instituição ¿ além do arraigado desgosto da grande maioria dos brasileiros com os legisladores em geral. Para a sociedade, Severino encarna o que neles há de mais afrontoso: o apetite por mordomias e salários opulentos, o nepotismo (o rei do baixo clero já empregou 8 parentes na Câmara), a prontidão para barganhas com os governantes de turno, a falta de compostura (o detentor do terceiro mais importante cargo da República se tranca no banheiro do seu gabinete para conchavar).

Os políticos responsáveis pagam em dobro pelo efeito Severino. Primeiro, por serem maculados por suas palavras e ações destituídas de senso de pudor, que originaram na internet uma "Campanha nacional contra a farra no Congresso". "Do jeito que vai a coisa, qualquer dia vamos apanhar na rua", diz um deputado. Outro, por via das dúvidas, tira o distintivo de parlamentar ao sair de Brasília.

Segundo, porque o novo presidente da Casa deu de agir autocraticamente, como os velhos coronéis dos grotões, com total descaso pelo que é a coluna vertebral de toda instituição legislativa ¿ o colegiado que reúne os líderes das bancadas, os do governo e os da oposição. Eles fixam de comum acordo com a Mesa a agenda de votações e os nomes dos relatores dos projetos para exame.

Além disso, entendem-se com os seus liderados (e com o governo, no caso do líder da situação) sobre as propostas a respeito das quais cada um poderá votar como quiser e aquelas que exigem o fechamento da questão, o voto unânime da bancada contra ou a favor. E, nas chamadas decisões por aclamação em plenário, votam em nome das bancadas. Veterano deputado, Severino conhece perfeitamente esses procedimentos.

Mas, decerto por sentir-se nos "píncaros da glória", como confessou assim que passou a dirigir a Câmara, e para provar que ninguém o tutela ¿ como se vangloriou na semana passada, referindo-se ao presidente da República que afinal se recusara a nomear ministro um seu protegido ¿, ele resolveu fazer tábula rasa da praxe que condiciona o poder do titular da Casa ao poder do colégio de líderes.

Sem consultá-los, marcou para esta semana a votação de diversos projetos, a começar do que trata da reforma tributária, e de uma penca de medidas provisórias, a começar da repudiada 232 que aumenta impostos a torto e a direito a pretexto de compensar o reajuste de 10% na Tabela do Imposto de Renda. Com isso, "tumultuou o processo", nas palavras do líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia.

Faz parte desse processo adiar a votação de matérias que afetam interesses fortes e conflitantes, como a reforma tributária, na expectativa do amadurecimento de um acordo que aplaine ao menos as principais divergências. É o que o governo busca também em relação à MP 232 ¿ daí a decisão de Severino parecer uma vendeta pela desmoralização sofrida ao tentar chantagear o presidente Lula na reforma ministerial. Essa exibição de coronelismo parlamentar mobilizou governo e oposição para um revide. Da reunião dos líderes marcada para hoje deve resultar algo próximo de um ultimato: ou o deputado-presidente cumpre o que prometeu ao ser eleito e se reúne semanalmente com os cardeais da Casa para nortear a atividade legislativa, ou eles tratarão de obstruir os trabalhos, não dando quórum para as votações.

Não se tem lembrança de algo do gênero no Congresso. É do jogo um partido tentar impedir a votação de um projeto a que se opõe, diante da derrota certa. Outra coisa seria essa inaudita greve contra um presidente de Mesa, que pouparia apenas o exame das medidas provisórias. Ela deflagraria uma crise de conseqüências imprevisíveis, porque, irresponsável como é, Severino poderá fincar pé, agravando o impasse.

Antes mesmo de completar 2 dos 24 meses de seu mandato à frente da Câmara, o deputado criou sucessivos problemas ¿ alguns passíveis de onerar as contas públicas, como a PEC paralela da Previdência e os benefícios do LOAS. Os políticos sérios que recorram logo ao seu engenho para enquadrá-lo sem fazê-lo perder a face.