Título: Residência não é para 'compensar deficiências'
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2005, Vida&, p. A25

Mas é o que vem ocorrendo, diz secretário-executivo da Comissão Nacional de Residência Médica, responsável pelos 16.477 residentes do Brasil

Além de suas aulas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), de seu trabalho como presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, de seu consultório no Itaim-Bibi e dos pacientes no Hospital Albert Einstein, Antônio Carlos Lopes tem outros 16.477 problemas para cuidar. Esse é o total de alunos formados em Medicina fazendo residência médica em todo o País -- os dois anos de prática em hospital, às vezes quatro ou até cinco, como na neurocirurgia, necessários para adquirir uma especialidade. Lopes atraiu os holofotes, há três semanas, quando a Comissão Nacional de Residência Médica, da qual é secretário-executivo, fechou sumariamente a residência do Hospital de Base, em Brasília, ao deparar com a precariedade das instalações e descobrir que ele não conseguiria funcionar sem os residentes. "Precisamos de ética e seriedade. E nessa linha mais programas serão fechados", avisa ele.

A residência médica cumpre hoje os seus objetivos?

Nas boas escolas cumpre bem, mas há outras onde ela é uma calamidade. Faltam recursos humanos, materiais, medicamentos; falta residente, preceptoria, um conteúdo programático, um modelo pedagógico, avaliação. O residente, como um aluno de pós-graduação lato sensu, precisa de um processo ensino-aprendizagem, mas em muitos locais ele é admitido como mão-de-obra barata. Às vezes se diz que numa escola dão 4 mil vagas de residência. Na realidade, são bolsas de emprego, não de estudo.

Qual é o tamanho da residência no Brasil?

Os dados mais recentes, de 2003, apontam 16.477 residentes em atividade, para um total de 22.424 vagas - logicamente, há vagas não procuradas. A ocupação, por área, é variada. Dermatologia tem 96% de vagas preenchidas, neurologia tem 85%, cirurgia geral, 84%. Especialidades como cardiologia, psiquiatria, pediatria e ortopedia, que estão entre as 20 principais, apresentam ocupação acima dos 60%.

Quanta gente fica fora do sistema? O que acontece com eles?

Uns 30% dos formados não conseguem entrar e isso é um problema sério. Muitos vão direto para o mercado, buscar um emprego. Os que podem vão fazer cursos de especialização nas faculdades e escolas médicas. Não é a especialização que se exige, de 360 horas legais, mas é parecida.

Mas esses cursos não atendem todo mundo...

Há os que vão trabalhar em consultório, acompanham o médico em um hospital, nas cirurgias. Isso não é bom, pois aprendem com apenas uma pessoa. A formação de um bom médico é muito mais complexa. O residente precisa ter contato com vários médicos, aprender com todos. Com um só, ele absorve suas limitações.

Por que está ocorrendo essa queda?

A residência não foi feita pra compensar as deficiências da graduação, mas é o que ela faz hoje. A graduação anda muito ruim. A residência devia ser um aprendizado em serviço, com tomada de decisão. Quem não toma decisão, em Medicina, não aprende.

Por que se chegou a esse ponto?

Porque muitos lugares, até escolas privadas, passaram a criar residência médica, permitiram a abertura de programas onde isso não devia ser feito. Por exemplo, temos em São Paulo um caso de residência médica em consultório de médico. Mas é um programa vencido, que não será renovado.

Como recuperar a qualidade?

A Comissão Nacional de Residência Médica é composta de indivíduos experientes, interessados no resgate da residência médica. Nessa linha, mais programas serão fechados. A comunidade está investindo recursos na formação do residente e tem de ter um retorno. Para dar outro exemplo, chegamos a colocar uma sindicância em uma comissão estadual de residência médica. Ela concluiu que aquela comissão não podia existir. Houve uma intervenção, ela foi trocada.

A residência do Hospital de Base, em Brasília, acaba de ser fechada. Esse foi o problema por lá?

O hospital precisa ter seu corpo clínico, funcionar independente do residente. Se ele admite que parando o residente ele também tem de parar, ali não pode ter residência médica. No Hospital de Base de Brasília não tinha nada. Imagine um serviço de cardiologia que não tem diurético. Não tinha nem Isordil.

Nesse cenário, a decisão de exigir revalidação do certificado de especialista fica parecendo algo secundário?

Revalidar o título de especialista é importante. O médico tem, sim, de se atualizar. Mas o que significa atualizar um médico? Freqüentar congresso não diz absolutamente nada. O sujeito pega ali o diplominha, vai embora, não assiste a nada. Publicar trabalho científico também não torna um médico melhor. Atualização é mais uma questão de consciência profissional. Os médicos estão interessados em se atualizar, basta ver que os congressos vivem lotados.

Como garantir uma boa atualização?

Tem de começar com esta pergunta: o que é, a rigor, a atualização? Ela não pode ser confundida com modismo. Dou-lhe um exemplo clássico: o benzetacil ainda é o melhor remédio para tratar erisipela. Mas quem é que receita isso, hoje? Aí o sujeito vai a um congresso, vê que o último antibiótico para erisipela é o medicamento tal. Passa a receitar e não resolve. Ser só atual não quer dizer que seja melhor.

Qual é a saída para termos uma medicina melhor?

Uma das muitas maneiras, para começar, é enfrentar uma doença da profissão chamada curriculite. Não é por ter mestrado ou doutorado que se tem o direito de ser professor de Medicina. O meu laboratório é a enfermaria, a beira do leito. Mas se você fica à beira do leito ensinando, transmitindo sua vivência, não vale. Não se contam as horas de estetoscópio no pescoço para fazer currículo. O currículo se baseia nessa farsa: ter trabalhos que não são publicados em lugar nenhum e são dinheiro público indo para o ralo.