Título: O PT e a dívida
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2005, Editoriais, p. A3

C om o evidente malogro do governo em quase todos os outros setores, a começar pelas políticas sociais, o grande trunfo eleitoral de que dispõe o presidente Lula é a confiabilidade de seu programa econômico. O que tem garantido tal confiabilidade é o fiel cumprimento da "Carta aos Brasileiros" que o então candidato presidencial do PT apresentou em junho de 2002.

Na época do anúncio, cresciam as incertezas a respeito da competência do candidato do PT para chefiar o governo e, sobretudo, sobre sua convicção a respeito do cumprimento de contratos legalmente firmados. Na "Carta", Lula comprometeu-se a respeitar os contratos, especialmente os referentes à dívida pública. Garantiu que ela seria honrada, como está sendo.

Ainda hoje os setores mais radicais de seu partido não se conformam com os termos da "Carta" e, sobretudo, com seu fiel cumprimento pelo governo Lula. O inconformismo foi mais uma vez manifestado no encontro que parlamentares, intelectuais e líderes de facções de esquerda do PT realizaram domingo passado em São Paulo.

A realização de um encontro paralelo ao promovido pela direção nacional para comemorar os 25 anos do partido foi a maneira que esses grupos encontraram para manifestar sua discordância em relação aos rumos que o governo Lula tomou. E algumas das críticas mais duras foram justamente contra a "Carta aos Brasileiros", a política econômica e, como afirmaram alguns dos participantes do encontro, a submissão do País aos interesses dos rentistas. Estes, segundo os esquerdistas, são os que vivem dos juros da dívida pública.

A dívida pública é um velho cavalo de batalha dos petistas, e não apenas os de sua ala esquerda. Por considerá-la excessiva, e por imaginar que ela serve apenas para concentrar riqueza nas mãos dos financistas e rentistas, muitos militantes do PT defendem que ela não seja honrada nos termos contratados. Brandem, com freqüência, números que parecem escandalosos a ponto de justificar sua tese estapafúrdia.

Nos últimos dez anos, por exemplo, os juros pagos pelo governo federal corresponderam a 88% do saldo devedor registrado em dezembro de 2004, como noticiou o Jornal do Brasil há dias. É, de fato, um custo elevado. A nova alta da Selic decidida na última reunião do Copom, que aumentará ainda mais esse custo (em 12 meses, uma alta de 0,5 ponto porcentual implica o aumento de R$ 2,4 bilhões nos juros da dívida federal), seguramente irritou ainda mais a esquerda do PT e deve tê-la tornado mais convencida de que a dívida é injusta e, por isso, não deve ser paga.

É uma visão eivada de defeitos. Ela é, em primeiro lugar, preconceituosa. Os credores do governo não são, como supõem esses petistas, "os banqueiros", "os financistas". São, em grande maioria, gente comum, como muitos militantes do PT, que aplica suas economias nos fundos de investimentos, fortemente lastreados em títulos públicos. Não honrar a dívida, por isso, é dar calote nessa gente comum, com a qual os petistas convivem diariamente e que é, sobretudo, eleitora.

É, também, uma visão equivocada sobre o papel e a origem da dívida. Não foi a ganância da minoria financeira, como disse um dos membros da esquerda do PT, que a produziu. Foi, isto sim, a ação de políticos encarregados de administrar os recursos públicos. A dívida atual nada mais é do que a expressão dos déficits públicos que se formaram e se acumularam por decisão política.

Ela chegou, sim, a um ponto em que seu custo é pesado para o País. Mas a solução não é deixar de honrá-la, pois isso, além de impor imensas perdas para o cidadão comum, lançaria por terra a credibilidade do governo e elevaria o custo de todos os financiamentos, inclusive para o consumo e para o investimento, indispensáveis ao crescimento da economia. A solução está em reduzi-la. Mas isso implica decisão política responsável, e corajosa. Para reduzir a dívida é necessário cortar outras despesas do governo, especialmente as de custeio. E, para dar resultado, essa política deve ser mantida por muitos anos.

Lamentavelmente, porém, em lugar de colocá-la em prática, o governo Lula, que nesse quesito teve um comportamento elogiável em seu primeiro ano, resolveu aumentar os gastos. É uma decisão perniciosa para o País, mas pelo menos nesse ponto a esquerda do PT parece concordar com o governo.