Título: Sem as muletas do FMI
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/03/2005, Economia, p. B2

O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, anunciou ontem que o governo Lula dispensou o acordo preventivo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) assinado em 1999 e renovado em fevereiro de 2003.

Esta é uma decisão que, em princípio, deveria circunscrever-se à área técnica. Mas, da maneira como foi divulgada, pareceu indicar que o ministro Palocci quis dar ao acontecido uma dimensão carregada de conteúdo político.

Não renovar o acordo significa três coisas: (1) que o Brasil devolve os US$ 26 bilhões tomados por empréstimo ao Fundo, que serviriam de colchão para amortizar eventual corrida ao dólar numa crise de liquidez; (2) que o País não está mais submetido ao cumprimento de uma política de metas macroeconômicas exigida pelo Fundo como condição para manutenção do empréstimo - o que não significa que a política vá mudar; e (3) que a condução da política econômica se livra do monitoramento do Fundo, previsto para ser exercido enquanto perdurasse o acordo.

Se fosse renovado, o acordo traria um punhado não desprezível de vantagens ao País. Daria acesso a recursos volumosos (pouco menos do que os obtidos com o superávit comercial no ano passado) a um custo relativamente baixo. Esses recursos poderiam ser usados numa emergência. Os mais pessimistas advertem que nos próximos meses deverão aumentar os riscos de nova crise internacional de liquidez, especialmente se o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) aumentar mais rapidamente os juros. Além de confortável, a renovação do acordo ainda daria boa margem de segurança aos credores estrangeiros, na medida em que, monitorado pelo Fundo, o governo brasileiro seria menos tentado a fazer uma besteira na condução da política macroeconômica.

No entanto, a não renovação também tem seus pontos positivos. Ao declarar que o Brasil não precisa do Fundo, o governo Lula reafirma sua maioridade administrativa. E, se mantém a atual política econômica, de fortalecimento dos fundamentos sem a auditoria externa do Fundo, dá mais uma demonstração de que está em condições de caminhar com suas próprias pernas.

Além disso, em apenas quatro meses (de dezembro a março), o Banco Central e o Tesouro adquiriram no câmbio interno quase metade do valor do empréstimo do Fundo. Isso significa que o governo brasileiro está em condições de garantir, sem ajuda do Fundo, um bom pára-quedas financeiro destinado a um pouso suave, caso surja uma situação incontornável de crise.

Essa atitude de independência exige contrapartida política. É verdade que, desde a Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002, o governo Lula está comprometido com a responsabilidade fiscal e com a obtenção de um superávit primário (sobra de arrecadação para pagamento da dívida) compatível com o controle do passivo público. Apesar disso, até agora sempre podia afirmar que a política econômica adotada foi herdada do governo anterior e imposta pelo Fundo. No entanto, agora que dispensou o acordo, terá de assumi-la como política sua e não de supostos baluartes da ortodoxia neoliberal.

O ministro Palocci poderá agora dizer aos conservadores que, além de cumprir cuidadosamente as metas, consolidou a política macroeconômica na linha da conquista gradativa da confiança dos credores e da redução da vulnerabilidade externa. Para as esquerdas do PT, também passa um recado: o de que conseguiu livrar o País da tutela do Fundo e dos países ricos que estão por trás dele.

Se isso é ou não parte do script destinado a pavimentar novas ambições, só os próximos meses vão demonstrar. Mas ninguém se iluda, Palocci é, antes de tudo, um animal político com olhos postos em estrelas de primeira grandeza.