Título: E Diadema quase acabou com o crime
Autor: Luiz Maklouf de Carvalho
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2005, Metrópole, p. C6

Desde julho de 2002, cidade cumpre à risca a lei de fechar os bares às 23 horas; além disso, urbanizou favelas e instalou câmeras

Casa animada, cerveja e destilados saindo à farta, bilhar e máquinas de videogame divertindo clientes marmanjos e menores. A noite chuvosa de quinta-feira, véspera do feriado, prometia um troco a mais para a comerciante Lídia Pedrina Oliveira Silva, de 55 anos, dona do boteco Vem Quem Quer, à Rua Coelho Neto, no bairro periférico Parque Real. Lídia sabia, como Diadema inteira sabe, que às 23 horas os milhares de bares e similares têm de fechar. Milhares, a rigor. Além de ter a segunda maior concentração populacional do Brasil - são 380 mil habitantes em 30 quilômetros quadrados, ou 12 mil habitantes em cada um deles - a cidade tem o provável recorde de 4.800 bares e assemelhados.

São quase 160 por quilômetro quadrado ou quase 80 por habitante. À exceção de 28 que têm licença especial para funcionar depois das 23 horas, os outros 4.772 não podem ultrapassar esse horário. É lei municipal, que também existe em 14 municípios dos 39 que compõem a região metropolitana. A diferença é que Diadema a cumpre, e rigorosamente, desde julho de 2002, com resultados expressivos na queda de homicídios.

De campeã da criminalidade no Estado - com uma pessoa assassinada por dia, em 1999 - passou, em 2004, à média mensal de 10,8, o menor índice dos últimos dez anos. No ranking de homicídios da Secretaria de Segurança Pública do Estado, passou a ocupar o 18.º lugar.

Este ano, de janeiro até a quinta-feira, ocorreram 32 homicídios e um latrocínio, mantendo a média do ano passado. Para a prefeitura, Polícias Civil e Militar, médicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a ONG americana Pacific Institute for Research and Evaluation (Pire), a lei de fechamento de bares, impropriamente apelidada de "lei seca", foi um dos fatores que reduziram significativamente os homicídios.

Os outros foram o trabalho conjunto das Polícias Civil e Militar e da Guarda Civil e os programas de inclusão social postos em prática pela prefeitura, entre eles a urbanização de favelas, hoje chamadas de núcleos habitacionais. A cidade tem rede de esgoto, água tratada e coleta de lixo em mais de 90% dos domicílios. Asfalto e uma boa iluminação pública cobrem 98% do município.

E há 26 câmeras de monitoramento instaladas em vários pontos da cidade, com alcance de até 2 quilômetros de aproximação. Serão 100 até o fim do ano. Os maiores problemas são o desemprego e a presença do tráfico de drogas.

"Cruzando as estatísticas dos últimos anos, 273 mortes deixaram de ocorrer", diz a advogada Regina De Luca Miki, secretária de Defesa Social e comandante da Guarda Civil Metropolitana. Segundo a prefeitura, pesquisa feita por ela própria indica 98% de aprovação da lei. "Aqui a lei é cumprida porque a fiscalização funciona."

Mesmo sabendo disso, Lídia resolveu arriscar. Às 23 horas em ponto, fechou as duas portas metálicas do Vem Quem Quer, mas seguiu atendendo a clientela, entre ela os menores Sílvio, de 15 anos, e Rafael e Leandro, de 17. Guerreavam no teclado do videogame, movidos a Duelo, uma garrafinha bojuda, com fermentado à base de frutas, de acentuado teor alcoólico, uma moda recente nas cidades do ABCD.

Na mesma hora em que o Vem Quem Quer cerrou as portas, a fiscalização saiu da sede da Guarda Municipal, no centro da cidade. É um comboio de cinco carros. O primeiro leva quatro fiscais. Os três que lhe seguem são da Guarda Civil, com oito integrantes. Atrás, um carro da Polícia Militar, com dois. Ele sai de segunda a domingo, segundo a secretária Regina Miki, percorrendo, em média, 60 quilômetros Diadema adentro. O Estado acompanhou o comboio nas noites de segunda e de quinta-feira. Os bares abertos são exceção. De segunda a quinta houve cinco notificações verbais, cinco por escrito e três multas.

O chororô dos donos pode ser resumido na frase de Francisco Faustino Souza, dono de um boteco à Rua Francisco Alves: "Eu já estava fechando." Eram 23h20 quando o comboio chegou - e o bar funcionava. Os primeiros que entram são os fiscais, como Luiz Carlos Bezerra, da área de tributos. Os PMs e os guardas-civis ficam no apoio, com discrição. Enquanto Souza reclamava, Bezerra pedia o RG e fazia a notificação. No primeiro flagrante é só isso. No segundo, tem multa. No terceiro, dá-se o prazo de 24 horas para o próprio dono fechar. Se ele não fechar, é fechado.

No Vem Quem Quer, a noite deixou de prometer às 23h35.

NO SUSTO

Treinados para jeitinhos brasileiros, como o de Lídia, os fiscais perceberam que as portas cerradas escondiam a animação. Bateram. No susto, Lídia mandou que entrassem por uma portinha lateral. "Só entramos pela frente", disse o inspetor Luís, da Guarda Civil. As duas portas metálicas foram levantadas. "Eu disse pra eles que queria fechar, mas sabe como é bêbado", tentou Lídia.

Os marmanjos foram saindo, mas os PMs e os guardas barraram os menores, revistaram-nos sem nada encontrar de comprometedor e acionaram o Conselho Tutelar, para levá-los à delegacia e chamar os pais. Lídia assinou a notificação, e jurou, por todos os santos, que nunca mais passaria das 23 horas.

"Eu fecho às 11, mesmo perdendo dinheiro, porque os fiscais não dão folga", diz, desolado, o comerciante José Santa Rosa, dono de um bar que fica na Rua Idealópolis, entrada da Favela Naval.

Vem a ser, como a memória de muitos deve ter guardado, o símbolo maior da Diadema campeã da criminalidade dos anos 90. Na Naval, em 97, um cinegrafista amador flagrou policiais praticando violências inomináveis. Veiculadas pela TV Globo, as imagens chocaram o mundo. Hoje, em processo de urbanização, com asfalto e luz, a quase ex-favela mal lembra seus piores dias.

Mas foram eles, com o escândalo da violência exposta, que despertaram a cidade para mudar a situação. A mobilização de todos os segmentos sociais e o mapeamento da criminalidade - constatando, em levantamento nos boletins de ocorrência, que grande parte dos crimes ocorria na madrugada, perto dos bares - resultou, em 2001, no projeto de lei da médica e então vereadora Maridite de Oliveira, aprovado por unanimidade em março de 2002, regulamentado em maio e posto em execução em julho.

Maridite, do PPS, não foi reeleita. É, hoje, diretora do Hospital de São Mateus, na zona leste de São Paulo. Ela diz: "A lei não acabou com a criminalidade, mas os benefícios que trouxe são inequívocos." A prefeitura anunciou há duas semanas que pretende chegar a homicídio zero. Conta, claro, com a lei.