Título: O toque dos sinos, um patrimônio
Autor: Eduardo Kattah SÃO JOÃO DEL REY
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2005, Vida&, p. A22

Iphan propõe tornar bem imaterial a leitura dos sons dos sinos das cidades históricas mineiras, tradição herdada do período colonial

Ao meio-dia da quarta-feira, a atenção da dona de casa Vera Maria dos Santos, de 55 anos, foi atraída pelo som do repique dos sinos da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, em São João del Rey, a 185 km de Belo Horizonte. Ela identificou de imediato. "Esse sino é da Irmandade Santíssima. Estão tocando o Ofício de Trevas", contou, enquanto caminhava pelas estreitas ruas do centro. Os sinos chamavam para a tradicional manifestação dos mosteiros medievais, cerimônia que permanece viva na cidade mineira, marcando o início oficial das solenidades da Semana Santa. A leitura dos significados dos sons dos sinos é uma tradição oriunda do período colonial, que uma parcela da população de São João del Rey ainda cultiva. No entanto, segundo o no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como toda herança cultural, não está livre do desaparecimento. Por isso, a superintendência do órgão em Minas executa um projeto para que a simbologia do toque dos sinos seja registrada como bem imaterial.

Segundo Fabiano Lopes de Paula, superintendente do Iphan no Estado, São João del Rey foi "o marco inicial" do projeto, que está sendo ampliado para outras cidades históricas mineiras, como Mariana, Ouro Preto, Catas Altas, Diamantina e Tiradentes.

O trabalho consiste, basicamente, na elaboração de um minucioso inventário do toque dos sinos, por meio de partituras, textos, gravações em áudio e vídeo e documentação diversa. Proposto inicialmente pela Secretaria de Estado da Cultura, o processo foi instaurado em novembro de 2001 no Iphan, em Brasília, e ficou paralisado por falta de recursos. Foi retomado no ano passado.

SINOS QUE FALAM

A linguagem dos sinos, dizem os estudiosos, tornou-se essencial para o acompanhamento de cultos, solenidades religiosas e rituais. Sublinhavam os atos mais importantes do cotidiano dos moradores das vilas coloniais. E eram uma das principais expressões remanescentes da sociedade barroca.

Para Aluizio José Viegas, de 64 anos, um dos primeiros pesquisadores do assunto, São João del Rey é talvez a única cidade que conseguiu preservar essa tradição de maneira expressiva. "É a cidade em que os sinos falam", destaca. "São João del Rey é muito ciosa da preservação das tradições, principalmente as religiosas."

Jairo Braga Machado, historiador do Iphan e supervisor do projeto no município, observa que na época as autoridades religiosas da cidade ficaram alheias a algumas determinações do Concílio Vaticano II (1962-1965), que acolheu mudanças como a renúncia à pompa litúrgica, a adoção de línguas locais nas cerimônias, entre outras. "Se por um lado isso mostra um certo conservadorismo em termos políticos, por outro fez preservar várias manifestações, inclusive o toque dos sinos."

AMEAÇA

Isso não quer dizer, porém, que a tradição esteja livre de ameaça. Por isso, o historiador ressalta a importância do registro. "Se amanhã essa comunidade onde o toque dos sinos está inserido resolver não tocar mais, e isso acontece, a história é dinâmica, daqui há 50 anos essa manifestação poderá ser resgatada." Segundo ele, alguns toques já caíram no desuso e "vão deixando de existir". Um deles é o do sino de São Raimundo Nonato - considerado o protetor das gestantes - na Igreja das Mercês, executado sempre que alguma moradora entrava em trabalho de parto.

As sirenes dos carros de bombeiros também foram aos poucos substituindo o toque do incêndio. "Ainda há sineiros que sabem reproduzir esses sons, mas, se não houver registro, isso pode se perder", alerta Machado.

Embora desperte o interesse de jovens, que, na maioria das vezes, abraçam a profissão de sineiro, a tradição permanece mais forte entre os moradores mais antigos. "As novas gerações têm sofrido uma alienação de tudo que é tradicional, religioso", lamenta Viegas.

Os toques mais populares continuam sendo os fúnebres. Resultado, segundo Machado, da relação estreita que a cidade tem com a morte, uma herança barroca. "O discurso da morte ainda é muito forte e onipresente na nossa cultura. É essa coisa do macabro. Aqui, os mortos, ainda em grande parte, são velados nas casas", diz.

"Pelo toque, dá para saber se o morto é mulher ou se é homem", salienta Fábio Adriano da Silva, de 32 anos, sineiro oficial da Matriz do Pilar.

De acordo com o superintendente do Iphan em Minas, a meta é conseguir aprovar o registro do toque dos sinos das cidades históricas mineiras até o fim do ano.